Janela Poética IV

Otávio Campos

 

milton-boeira

Foto: Milton Boeira

 

O ESPELHO

 
não se mede
tempo e espaço pelo tamanho da cidade
vila adentro
cidade velha
hoje a tarde e eu
mais velho do que as casas e as ruas de pedra
penso que amanhã
talvez não exista outra solução
que não a fuga

um rio corre calmo
eu não mergulho mãos
pra aprender a calma
eu corro
mais do que os carros
e os anos que ficam trancados
dentro da cidade murada
não cabe
o que pensei em fazer nos dias
em que lá em casa a luz era amarela
e anna chegava dizendo que agora sabia
a razão de eu ser poeta

e era
1. ser mais alto do que as montanhas
que protegem a cidade
(como se existissem montanhas além da linha do mar)
2. ser menor do que a vontade
de desistir do barco e dos furos no fundo do barco
durante a chuva
3. não ter pressa em conhecer os outros
mundos e as pessoas que existem dentro deles
4. conhecer antes de tudo a mim mesmo
e os mundos e as pessoas que existem dentro

por isso hoje
enquanto voltava a casa
escrevi uma carta
que apesar de branca carrega no remetente o impulso grande de voltar

por isso hoje
no caminho de casa
comprei um espelho
e o coloquei na porta
da sala
virado
pra rua

(e envelhecemos a casa
eu e a cidade
enquanto é dia

o espelho não)

 

 

***

 

 

FENDA

 
visitamos cidades destruídas
asilos abandonados nos quintais
teu rosto uma fenda – por enquanto
desistimos de ser tristes

você acredita não existe outra palavra
mais bonita que triste
enquanto isto é uma fotografia,
um postal de Budapeste e suas
cinco mil luzes azuis – será
que ele te encontra hoje em casa:

uma cidade que te povoa na infância
algures teu nome nalguma porta
quem te disse um dia para sair com as chaves
e as coisas que despencam – por enquanto

isto é uma queda
isto é uma seta

quando eu falo em seta você pensa
em seta ou em flecha
você pensa em uma seta como uma
flecha

você pensa em uma flecha como um
desastre

estar de pé tem sido uma aventura,
uma escavação ou uma tragédia
arrancar aos peixes nem tanto,

na data o postal um ano escondido
teu nome alhures: você ouve barulhos
das pedras que descem murmúrios
mas isto é um acidente

uma flecha que atravessa o poema
escuta como ele pulsa devagar

discutimos sobre precipícios
os fados que me ensinaram
de não tornar ao chão – por enquanto
isto é um aviso,

a porta que ainda não caiu
a última casa que resiste irônica
os azulejos que invertem
a ordem do mito.

 

 

***

 

 

ANTIODE AO PAI NATAL

 
deverias ler mais os portugueses e aprender
o que é o poema sério – ainda não sei
muito menos o nome de verdade da Catarina
de Escócia, mas que era uma rainha
que gastou os últimos dias em cima da terra
abençoada pelos deuses escoceses cultivando
um enorme pé de erva
estas coisas são imperdoáveis
ou era outra história que inventavas
para usar o nome de Deus, temer a Deus
a todas as coisas
hoje é dia de condenar os pecados
um vento não fala de árvores empalhadas
nem é vento e não passa
alguns jornais noticiam rituais pagãos,
o euro aumenta nesta época do natal,
montaram um presépio em que o miúdo deitava ao chão
e ninguém sequer sentenciou
as coisas mudam e os homens se perdem todo dia
uns morrem e depois morrem de novo todo dia
e as luzes continuam acesas
e piscam
parece que inventaram hoje, olha lá que ainda
é tempo de cometer absurdos
dar cabo aos jogos das cartas seria uma aventura
imperdoável
ser útil ao amor e aos desejos de fim de ano
enquanto o outro desenha teu nome
na testa encharcada da menina chinesa
que não dorme
é duro feito pedra
a latitude é 3
não se mede a densidade relativa do ar
as asas que me meteram às costas ela confunde
com ironia e a terra da China é fértil
disseram que pra lá já passa de 2016
e já se foi o ano do porco
não se brinca com astrologia
isto não ajuda
isto não perdoa um monte afastado
de cultuar certos deuses

 

 

***

 

 

A ESPERA

 
enquanto o cigarro esvazia e no porto
a temperatura cai sem deixar vestígios
pensamos que a cidade sente por nós
ali não estivemos
mas nosso amor sim

pelo menos em palavras e silêncios
e o que somos hoje não ultrapassa a barreira disso

você de costas para a champs-élysées
uma fotografia clara tão mais bonita do que as minhas
eu deveria te escrever um poema
que terminaria com um desenho calmo e saudações
da vida portuguesa

mas nunca fui bom em desenhar a espera.

 

 

***

 

 

O VERBO

 
já podemos sentir de novo a casa vazia
algumas palavras perderam o sentido
outras arranham as paredes como um bicho
você as deixa fechadas

foi então que começamos a anotar as coisas
nas cortinas me pega a mão faz um desenho
temos um cubo de gelo e escreve: gelo
temos uma casa e escreve: casa

o carteiro já não vem e a isso
somam-se meses pela vizinhança
espalha-se um boato de que aqui
dentro estamos todos mortos

se te desse agora uma fotografia
exatamente de agora
sentada como está
quanto tempo levaria até que
escrevesse na parede
o nome de lugar

algum?

 

Otávio campos é um poeta e editor nascido em 1991. É autor dos livros “Distância” (Aquela Editora, 2013); “Outros tipos de disparos” (Edições Macondo, 2016) e “Os peixes são tristes nas fotografias” (Bartlebee, 2016).

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *