Geraldo Lavigne de Lemos
o despertar do ódio
o ódio perdeu a mordaça
atrás da tela
ele agora tem voz alta
no meio digital
realidade virtual
que desvirtua
o real
– e que o expõe, também
associal, em rede,
o ódio é mais forte
***
falta
antes Niemeyer tivesse projetado a moral de Brasília.
nem em seu maior devaneio faria linhas tão curvas,
nenhum lápis teria grafite mais sujo,
nenhuma tinta seria mais permanente,
nenhum concreto, mais duro.
faltam os traços de Niemeyer nos homens,
faltam o sonho, a dedicação e o outro.
falta sempre alguma coisa,
dinheiro sempre dizem que falta.
ou falta no orçamento,
ou falta no bolso.
e como faz falta.
antes Niemeyer soubesse que projetava uma pocilga,
evitando, eu, falar promiscuidade,
e teria, ele, projetado pastos,
baias mais adequadas,
confinamento, e abatedouro.
***
nas malvinas
no peito da feira
lateja uma chaga purulenta
crianças vendem sonhos e infância,
pessoas vagam desalmadas
entre crimes e monturos
a lama – mistura de chuva, chorume e reuma
e salmoura das carnes e peixes –
que banha os pés dos ambulantes absortos
é o icor que escorre daquele lugar
o negócio é tão grave
que o piso tremula de frio e pavor
e da cobertura vazam suor e lágrima
***
dobraduras
barcos de papel viajam
nos rios intermitentes das sarjetas
com sonhos escritos nos costados
ágeis, no talvegue,
entre ondas do curso irregular de raso álveo,
ignoram que a esquina encerra
o sumidouro de tudo que navega
– barco, sonho, água e terra
***
o preço fora do mercado
30 mil reais.
esse foi o preço que o judiciário deu à minha perna.
ela, que foi boa, levou-me por aí,
pedalou bicicleta e fez tantos gols
ela, que saltou a poça naquele dia chuvoso,
esforçou-se pela minha saúde
e bailou com a pessoa
por quem eu me apaixonaria
ela, que foi má, provocou pênalti no futebol,
dilacerou o bicho e machucou outras pessoas.
30 mil reais.
esse foi o preço que o judiciário deu à minha perna.
ela, que me faltou no dia da audiência
para vencer os obstáculos do fórum,
e continua me faltando na hora do banho,
do café e do trabalho…
30 mil reais.
esse foi o preço que o judiciário deu à minha perna.
ainda tenho esperança de ter perna de novo.
não sou um louco que espera que ela cresça como rabo de
[lagartixa.
tenho esperança de um dia ter dinheiro para comprar uma
[perna mecânica, isso sim.
e, se o desenvolvimento da medicina seguir bem,
ainda verei pernas naturais serem implantadas com
[sucesso.
nesse dia, perguntarei ao juiz se ele me vende a dele.
Geraldo Lavigne de Lemos é graduado em Direito (UESC), especialista em Direito Notarial e Registral (Anhaguera/Uniderp) e em Gestão Pública (UESC) e mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente (UESC). Membro da Academia de Letras de Ilhéus, autor dos livros À Espera do Verão (2011), amenidades (2014), alguma sinceridade (2014) e Massapê: Solo de Poesia (2016), todos de poesia e pela Editora Mondrongo. Tem no prelo o livro Poemas furta-cores, pela Editus – Editora da UESC. Foi curador do II Festival Literário de Ilhéus.