Janela Poética IV

Mercedes Roffé*

 

Foto: María Tudela

 

Tradução: Diana Araujo Pereira
Seleção: Clarissa Macedo

 

XI

 

O amor será para o corpo
o que a contemplação é para a alma?
Esse sossego?
Essa intuição
do todo no instante?
Esse relâmpago no qual
o real se revela
consonante com seu eco?
A suspensão fugaz
que pressente tudo,
e tudo compreende?

Será aquele hiato no fluir do tempo
o único lar e pátria verdadeira?
Lar e pátria:
Chamo assim o possuir-se,
o olhar-se e ver-se refletido
em uma água
confiável e serena.
Corpo de luz
Corpo de bem
Hiperbólica pétala remando
entre uma e outra margem.

E se não forem duas as margens?
Se tudo for um?
Se não forem dois nem um
senão um glissando de espelhos
em direção e a partir da luz —ou do lodo?
Cada estação com seu afanoso demiurgo
mais confuso que cruel
ofuscado, mergulhado
no excesso
de um reino que ignora e que o ignora.

Regente, príncipe e menino —tudo ao mesmo tempo,
tudo a destempo.

E se não fosse tudo mais
que uma viagem
pelas idades congeladas desse príncipe
em direção à luz —ou ao lodo?

 

 

XI

 

¿El amor será al cuerpo
lo que la contemplación al alma?
¿Ese sosiego?
¿Esa intuición
del todo en el instante?
¿Ese relámpago en el que
lo real se revela
acorde con su eco?
¿La suspensión fugaz
que presiente todo,
y todo lo comprehende?

¿Será aquel hiato en el fluir del tiempo
el único hogar y patria verdadera?
Hogar y patria:
Llamo así al poseerse,
al mirarse y verse reflejado
en un agua
confiable y serena.
Cuerpo de luz
Cuerpo de bien
Hiperbólico pétalo bogando
entre una y otra ribera.

¿Y si no son dos las riberas?
¿Si todo es uno?
¿Si no son dos ni uno
sino un glisando de espejos
hacia y desde la luz —o el fango?
Cada estación con su afanoso demiurgo
más confundido que cruel
obnubilado, hundido
en el exceso
de un reino que ignora y que lo ignora.

Regente, príncipe y niño —todo a un tiempo,
todo a destiempo.

¿Y si no fuera todo más
que un viaje
por las edades congeladas de ese príncipe
hacia la luz —o el fango?

 

 

 

***

 

 

 

XV

 

O poema é o rosto no espelho
mais verdadeiro que o rosto e que o espelho.
O poema é o fluxo do sangue
para além do corpo,
o ritmo do sangue para além do sangue
—seus leitos rigorosos, seu latejar surdo e unitário.

O poema é o ritmo do outro em mim
para além de mim, sempre, além,
onde meu silêncio topa com teu ritmo
e repercute em mim, que solfejo no poema
um ritmo numinoso,
cifra que faz eco no eco
que é corpo verdadeiro
—o numinoso em ti e em mim—
o ciclo das esferas tocando-se e abandonando-se
—distanciando-se, sim, uma da outra,
mas soltando-se de si também
cada qual
em sua dourada, fecunda negligência.

Em seu ritmo me desdobro.
Em seu metrônomo
caprichoso e fugaz
desdobra o universo suas fantasmagorias
—sua verdade.

Não há tradução possível.
—ou sim, há:
de si próprio a si mesmo,
de si a aquele que tateia e vence
do que sabe de si
—seu pobre império.

O poema, digo,
digo a música, digo o movimento
da dança no corpo, o da pedra esculpida…
E a música no traço e na pedra, digo,
e o movimento sinuoso e firme do poema,
douta cadência, felicíssima queda no cruzamento
de todos os sentidos.

 

 

XV

 

El poema es el rostro en el espejo
más verdadero que el rostro y que el espejo.
El poema es el flujo de la sangre
más allá del cuerpo,
el ritmo de la sangre más allá de la sangre
—sus cauces rigurosos, su latido sordo y unitario.

El poema es el ritmo de lo otro en mí
más allá de mí, siempre, más allá,
donde mi silencio se topa con tu ritmo
y repercute en mí, que solfeo en el poema
un ritmo numinoso,
cifra que hace eco en el eco
que es cuerpo verdadero
—lo numinoso en ti y en mí—
el ciclo de las esferas tocándose y abandonándose
—alejándose, sí, una de la otra,
pero desasiéndose de sí también
cada cual
en su dorada, fecunda negligencia.

En su ritmo me despliego.
En su metrónomo
caprichoso y fugaz
despliega el universo sus fantasmagorías
—su verdad.

No hay traducción posible.
—o sí la hay:
de lo uno a sí mismo,
de lo uno a aquello que tantea y vence
de lo que sabe de sí
—su pobre imperio.

El poema, digo,
digo la música, digo el movimiento
de la danza en el cuerpo, el de la piedra esculpida…
Y la música en el trazo y en la piedra, digo,
y el movimiento sinuoso y firme del poema,
docta cadencia, felicísima caída en el cruce
de todos los sentidos.

 

 

 

***

 

 

 

XX

 

Queda não houve.
O alto está aqui. É aqui.
Dentro.

Queda não houve.
Distrações há. Ventos. Fugas.
Maquinárias. Grandes, grandes.
Jogos de sombra, preocupação e olvido. De si.
Sempre houve.

Cada época. Cada
civilização
retratada em sua própria engrenagem
de humilhações e esquecimento. De si.
Roubar o fogo não é roubar nem é fogo.
Recordar é remontar-se, preservar para si o acesso
ao resplandor custodiado por
—não seus guardiães, mas seus inimigos.
Vertedouro de sombra e sangue.
Quanto maior pobreza, mais esquecimento.
Quanto mais prepotência, menos luz.

Em si e fora de si
—tudo é um—
única morada de pura geometria
e luz regendo
mansa, inexoravelmente, generosa-
mente banhando
tudo de si.

Luz estético-ética.
Esquecida de si —entregue.
Fórmula-Mãe.

E ainda há Algo. Algo, fora
que não se pensa.

Outro tom. Outra
modulação da luz.

Lá na origem.

 

 

XX

 

Caída no hubo.
Lo alto está aquí. Es aquí.
Adentro.

Caída no hubo.
Distracciones hay. Vientos. Fugas.
Maquinarias. Grandes, grandes.
Juegos de sombra, preocupación y olvido. De sí.
Siempre los hubo..

Cada época. Cada
civilización
retratada en su propio engranaje
de humillaciones y olvido. De sí.
Robar el fuego no es robar ni es fuego.
Recordar es remontarse, preservar para sí el acceso
al resplandor custodiado por
—no sus guardianes, sino sus enemigos.
Vertedero de sombra y sangre.
Cuanto mayor pobreza, más olvido.
Cuanta más prepotencia, menos luz.

En sí y fuera de sí
—todo es uno—
sola morada de pura geometría
y luz rigiendo
mansa, inexorablemente, generosa-
mente bañando
todo de sí.

Luz estético-ética.
Olvidada de sí —entregada.
Fórmula-Madre.

Y aún hay Algo. Algo, fuera
que no se piensa.

Otro tono. Otra
modulación de la luz.

Allá en origen.

 

 

 

***

 

 

 

XVII

 

Além dos ventos
rumorosos

além da aurora

transitam
dispersos
retalhos de uma história

—centelhas
resplendores—

arrancada do vazio
(a sua voz
a sua mudez)

enlaça-os
uma mão mestra

ou a história
em si
impõe seu ostinato

 

*

 

De um modo ou de outro

depois da alvorada
ou
dos rumores do vento
amanhece
—diáfano
leve
pertinaz—
um sujeito e seu verbo

 

 

XVII

 

Más allá de los vientos
rumorosos

más allá de la aurora

transitan
dispersos
jirones de una historia

—destellos
resplandores—

arrancada al vacío
(a su voz
a su mudez)

los hila
una mano maestra

o la historia
en sí
impone su ostinato

 

*

 

De un modo u otro

tras el alba
o
los rumores del viento
amanece
—diáfano
leve
pertinaz—
un sujeto y su verbo

 

 

 

***

 

 

 

XVIII

 

vasilhas do nada
somos
—disse—
derramando-se
no escuro

bexigas do nada
derramando
—disse—
urinas, óxidos, rubis

centelhas
—disse—
que na sua queda
(nossa)
encontram
sua hybris
sua obsessão

anil dignificado
somos
—disse—
pelo alado
voo da alma
entre ser e não ser

 

 

XVIII

 

vasijas de la nada
somos
—dijo—
derramándose
en lo oscuro

vejigas de la nada
derramando
—dijo—
orines, óxidos, rubíes

centellas
—dijo—
que en su caída
(nuestra)
encuentran
su hybris
su obsesión

añil dignificado
somos
—dijo—
por el alado
vuelo del alma
entre ser y no ser

 

 

 

***

 

 

 

XIX

 

um fim, uma forma, uma queda
uma espera obediente
uma ferida
a brancura bordada sobre o branco
e a matéria muda
atrapada e derramada
suspensa
na tela
áspera
vibrante opacidade que circunda, cega,
a história cega que ampara
o território
e os nomes enterrados
flamejantes ainda
como archote
projetando sua sombra sobre este
tórpido feroz
certeiro
irrenunciável
aqui e agora

 

 

XIX

 

un fin, una forma, una caída
una espera obsecuente
una herida
la blancura bordada sobre el blanco
y la materia muda
asida y derramada
suspendida
en el lienzo
áspero
vibrante opacidad que ciñe, ciega,
la historia ciega que cobija
el territorio
y los nombres enterrados
llameantes aún
como candelas
proyectando su sombra sobre este
tórpido feroz
certero
irrenunciable
aquí y ahora

 

* Poemas dos livros Las linternas flotantes e Vislumbres (Madrid/México, Vaso Roto, 2014)

 

Mercedes Roffé é uma das vozes mais reconhecidas da poesia latino-americana atual. Alguns de seus livros foram traduzidos e publicados na Itália, Quebec, Romênia, Inglaterra, França e Estados Unidos. Desde 1988, dirige o selo Edições Pen Press. Obteve as bolsas artísticas John Simon Guggenheim (2001) e Civitella Ranieri (2012).

 

Diana Araujo Pereira é Professora de Literatura Latino-Americana da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Doutora em Literaturas Hispânicas (UFRJ). É tradutora e poeta. Foi Presidenta da Associação Brasileira de Hispanistas (2014-2016), Coordenadora do Instituto Mercosul de Estudos Avançados – IMEA-UNILA e Coordenadora do Curso Letras, Artes e Mediação Cultural do Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História (ILAACH-UNILA). É líder do grupo de pesquisa " Construções socioculturais da Tríplice Fronteira". Entre suas publicações, estão Horizontes Partidos (NY: Artepoética Press, 2016) e La piel de los caminos y otros poemas (Bogotá: Biblioteca Libanense de Cultura, 2017).

 

 

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