Janela Poética IV

Pedro Moreira

 

Desenho: Felipe Stefani

 

 

somente aquele que desavisadamente
dançou sozinho pode sentir na pele
um ameaço de explicação do mundo,
no corpo,
uma repentina liberdade.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

desencantamento
é o ato de engolir
de uma só vez
todo canto que foi cantado
desdizer toda palavra de amor,
refazer os passos,
desmanchar as lágrimas,
é um ato de retomar
a terra distante de todo coração partido
nenhum pássaro é capaz
de desencantar
porque sua vida depende disso:
ele é voz que voa
que ecoa pelo planeta
e ele não pode comer
de volta o mundo inteiro
que ele cuspiu
o amor é um atentado contra si
e os pássaros não são capazes de se suicidarem
a gente é que mata
e mata tanto que até de amor
a gente morre.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

no tempo em que eu quisera
uma paisagem outra – eu desconhecia
o significado da palavra deslumbrante:
um canavial esverdeado, árvores empoeiradas,
crianças debaixo do sol, vendaval de brincadeira,
uma tempestade, uma água tão açude, uma terra
vermelha – eu desatento, mal percebo que o
instante é o que temos, só o que temos
e logo ele vira algo que se passou – uma memória bela de algo
subestimado.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

O meu silêncio é, antes,
um atentado contra mim mesmo.
Uma comunicação que sendo para mim óbvia,
para os outros, mistério. Não um segredo.
Uma rocha que deitei em cima da minha fala.
Cerrada minha língua num nó de desajuste,
caminho e sigo com a boca entreaberta
– sempre há um ameaço de palavra.
Contudo, o silêncio pede que exista, que exista.
O silêncio não quer ser rasgado por uma língua calejada,
por uma boca envenenada, de alma danada.
Ele clama que exista, que exista. Deixe-o viver.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

tem coisas que continuam
sendo segredo mesmo depois de ditas
porque em sua natureza guardam
uma característica
nada verbal,

uma coisa que se sente na pele ou não,
não é transmissível,
não pode ser, são partes de nós

que quando alguém tenta compartilhar arranca de si
talvez uma parte vital que mantivera tudo em pé

cometi por você um suicídio parcial
quase tudo veio abaixo

rachaduras enormes surgiram
no meu rosto envergonhado
de repente goteiras escorrem
por elas, ou era infiltração.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

atravesso o inferno que há em mim
com a coragem que me falta, com a luz que me falta,
com a virtude que não tenho, faço do que me ausenta
a minha força pouco elaborada

a maldade é mais evidente

quando no núcleo dos infernos, todos os cinco
que há em mim, trago nas mãos um copo
de bebida 70 por cento de álcool,
deixo, por um descuido mal-intencionado,
todo o copo cair na pequena chama de meu inferno interior
uma chama azulada, um fogo triste

quero-me um inferno inteiro
não me aceito pela metade.

 

Pedro Moreira nasceu em Itaí no dia 18 de abril de 1995. Desde pequeno se interessou pelos livros e antes de escrever já fabulava. Aos 14 escreveu suas primeiras crônicas, depois passando aos poemas. Reuniu alguns contos em um livro que editou em 2014 chamado “Embora o mundo tivesse cor”, pela Multifoco. Em 2016 saiu um volume de poemas, “Oitenta e três idades”, pelo Clube de Autores.

 

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