Janela Poética IV

Romério Rômulo

 

Foto: Hermes Polycarpo

 

se amo o teu olho dilatado

 

o anjo da morte me chega, olho de cobra
sua pupila ardente me retalha
meu foro íntimo é um corte de navalha

o mundo por inteiro é uma dobra.

 

2.
nasci agora e o meu amor nasceu
da tua pele feita madrugada.

quando eu escrevo é que a emoção morreu.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

aqui, eu, jovem cão, enclausurado
bebi da fonte amarga do pecado

meu barco torto, bêbado, ardente
cortou a minha alma de indecente

em tudo fez-se a dura melodia
aguada do meu corpo que fugia

no fel dos candelabros dos infernos
ardi no fogo de 40 invernos.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

que eu fosse a mulher do meu espanto

a minha alma fêmea destravada
a minha alma rígida se encanta
com a minha alma vivida de espanto
quando a paixão caminha sobre o nada

se a paixão que bebo no meu canto
forjar a minha mão enclausurada
eu mulher vívida que peso cada pranto
relato bêbada a paixão que me embriaga

tomada da miséria e do quebranto
que pisa a minha alma depravada
eu verto sobre a carne o meu encanto

que eu fosse todo o corpo em que eu levanto
que eu fosse a paixão mais do que vaga
que eu fosse a mulher do meu espanto!

 

 

 

 

***

 

 

 

 

ítaca e áfrica

 

de ítaca roubei helenas tantas
em áfrica montei os sete mares
casei-me com mulheres todas santas

cobri meu corpo gasto de alamares.

as vidas são mais tantas e mais quantas
em muros e desejos sacripantas
castrados e vertidos pelos ares?

poetas são delírios bem vulgares.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

a língua de camões

 

1.
mais amaríeis meu cortado canto
se mais soubésseis como sois amada
e navegásseis pelo meu espanto.

 

2.
se me amásseis tamanho eu vos diria
da dura solidão dos precipícios
da falsa imensidão dos sodalícios
da cortada razão dos meus ofícios

se me amásseis por certo eu vos diria

e a minha voz em voz por todo canto
decerto iria quebrar-vos em espanto.

 

3.
senhora, eu vos amei por tanto, em tudo
que de camões busquei o meu primeiro
estado de um estado verdadeiro
e vos cantei canções que são veludo.

 

4.
se os arcabouços meus em vós levásseis
e se dormísseis no meu louco porto
e mais amásseis o meu antro torto
e se acordásseis meu poema morto

faríeis meus duelos bem mais fáceis.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

“eu que já fui cavalo e cavaleiro”

 

eu que já fui cavalo e cavaleiro
rangi os trapos num cerrado chucro,
pavoneei às feras meus intentos,
sofri imensidões como se gotas.

cavalo e cavaleiro que já fui
por anos repisados de novilhos
brandi os versos como fossem trilhos
de intensa solidão. agora rui

o meu intento de quixote e sancho
ter uma dulce, marília, o que me leva
a ser cavalo, cavaleiro e treva
pelos adros das ilhas que não sei.

eu que já fui cavalo e cavaleiro
de tronos abissais em que entorpeço
arranco os estilhaços de um berreiro
e me destravo, nu, no meu avesso.

cavalo e cavaleiro fui.
cavalo, cavaleiro e rei.

 

Romério Rômulo é professor de Economia Política da Universidade  Federal de Ouro Preto, MG. Poeta e editor, tem publicados os livros de poesia “Bené para Flauta & Murilo” (1990), a caixa “Tempo Quando” (4 livros, 2 volumes, 1996), “Matéria  Bruta” (2006), “Per Augusto & Machina” (2009), “Si yo fuera Maradona”(bilingue,português/espanhol, 2015), entre outros. Tem uma coluna semanal de poesias no Jornal GGN, editado pelos jornalistas Lourdes e Luis Nassif. É um dos fundadores do Instituto Cultural Carlos Scliar, com sede no Rio de Janeiro.

 

 

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