Janela Poética IV

Tales Pereira

 

Foto: Ricardo Stuckert

 

ÓBICE (1)

 

Deitei sob a terra
Medos infundados
Geleiras afundaram-me
Em fractais anseios

Tudo faço em ciclones
Tumulto na sala de estar
A anfitriã opaca
E o café frio do sono
Convida-me ao deleite
Bolos mofados
E sonhos escatológicos

Revirei o celeiro
Entre plumas e palhas
Para enterrar-me no agulheiro
Pântano de pontas soltas

Subi ao sótão
E aspirei as lembranças
Bati tapetes
Amamentei traças
Servi pulsos aos cacos de vitrais
Fiz guisado de tempo
Com sobra de ossos
de meus antepassados

Varri a varanda
Inaugurando passagens
Entulhei pecados
No tapete surrado da porta
Dancei com folhas vencidas
De qualquer outono

Plantei heras e horas
Na murcha véspera da tarde
Reguei-as com águas de soluço
Cortei videiras atrevidas
E suas hastes indevidas
Colhi azevinhos
Na espera infértil
De quem sabe um beijo seco

Talhei entranhas
Com a faca da cozinha
Mil cortes
Em minha espessa pele
Com bílis aspergi os cômodos
Cruzei o corredor
Em tudo untando
E bendizendo
Risquei no chão
Áspero alicerce
O início da chama

 

 

 

***

 

 

 

PILATOS SE BANHA

 

Eu hoje volto
Com as mãos sujas de sangue
E não sei de quem
Já secou e mancharam
Vestes brancas e encardidas
Da sujeira do mundo

Tentei alvejá-las
Mas o cheiro fica
Entranhado na mente
Inundando as narinas

Ouço as vozes
De corpos que gritam
E o pavor me acorda
Em noites insones e nebulosas

Olho para as mãos
E estão rubras
Um alerta indelével
E as cubro com luvas
Para esquecer o sangue

Saio nas ruas
Paralelepípedos violentos
Jogados contra um crânio qualquer
Lançam-me num mar sangrento
Vejo vísceras e miúdos
Numa carnificina aterrorizante
Mas fecho os olhos
Tapo os ouvidos
Emudeço…

Sobram delitos
Para cada morte sentenciada
Tento convencer-me
Há no silêncio a virtude dos justos
E quem se resguarda
Tem o privilégio da vida

Sigo pela rua deserta
Não pela falta de gente
São seres de retidão
Que não gritam e nem se aborrecem
Inofensivos e cheios de bem
De branco trajados
E com luvas
Mesmo distante o inverno…

 

 

 

***

 

 

 

ARREMETIMENTO

 

Faço compêndios
Arrisco inscrições
Dentro de páginas ariscas
Eu sangro letras
E cada gota
Já é minha parte
No pacto maculado

Embaraço lãs
Entre agulhas agonizantes
Meu tear tem pressa
Em capturar
O fio do nada
E sua tenuidade
Na tapeçaria do tempo

Lavro atas obscuras
Cego no labor de sectários
Assino no anverso
O lado de fora
Da minha pele fugidia
Meus dias são documentos
Arquivos do morto passar

Corto a fita de cetim
Inaugural arquitetura
De voltas retorcidas
Abro esse mesmo caminho
E o pavimento
Sob o que em mim
Desiste e não recomeça
Curvas precedem
Diagonais flutuações

Abro imensas galerias
Nessa terra que há
Em busca de cínicos cristais
E nada do que busco
Minera a dor
Já o magma flui
Tão denso queimor
Meu solo alcalino
Ferido em ravinas

 

 

 

***

 

 

 

A BOTA ACIMA DOS PESCOÇOS

 

A bota acima dos pescoços
Brilhante e ilustríssima
Engraxada na melhor saliva
E com panos caríssimos
De decentes cidadãos

A bota acima dos pescoços
Dizem que é cega
Tal qual a deusa da balança
Mas tem forte predileção
Por tingir-se de sangue retinto

A bota acima dos pescoços
Curtida em puro couro militar
Orgulho da pátria
Item customizado na nação
Uma bela babá para o sono das elites

A bota acima dos pescoços
Pisando vigorosa no chão
De favelas e subúrbios
O solado tem fome animal
E devora ossos marginais

A bota acima dos pescoços
Pisa em folhas flutuantes
Balé adestrado e perfeito
Quando dança nos salões
Dos bairros da nobreza

A bota acima dos pescoços
Sabe de toda a carnificina
E sente-se orgulhosa
Do seu idioma de dor e violência
Abatem presas para um deus odioso

Os pescoços debaixo da bota
Ouvem a sinfonia macabra
De ossos partidos
E seus gritos desvanecem
Há falta de ar no país
E os pulmões precários
Tentam capturar
Qualquer sinal de vida

 

 

 

***

 

 

 

À NOITE NO BATEKOOL

 

Vejo línguas infames
Mortais verbos
De afiar navalhas

Esparramam na rua
Closes certos
E muito atrake
Abrindo esparcates
Em pernas longuíssimas

Giro pombagiresco
Voam as mechas
Das laces alucinantes
Cabeças como rodas da fortuna
E o futuro é tombamento

Magias profanas
Antigas conjurações
Ocultação dos mistérios
E o universo acuendando
E tudo sumindo
Num buraco negro

A Super Lua montada
Do céu brindava
E fazendo o lipsync
Banhava todas
Criaturas insubmissas
Na fronteira
Da folia
Daquelas que apenas
Deslizam

 

Tales Pereira. (Ar)risco versos desde os nove anos e até agora tenho essa maquina rota de fazer versilharias. Trago também meu corpo de beesha para esta tessitura, e uso desse verbo viado para enviadescer palavras e conceitos. Tenho vários palcos para uma multidão inquieta. Às vezes Thallyz Mann vem rodar essa gira comigo, ou eu com ela e vice-versa. E vamos todas girar: a doutoranda, a aspirante a performer, a cantora de chuveiros e tantas outras.  

 

 

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1 comentário

  1. Pilatos se banha. É um choque!

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