Janela Poética IV

Bianca Grassi

 

Foto: Fátima Soll

 

Graças a deus

 

manhã de quarta-feira
botei teu nome na boca do sapo
e costurei com fios do teu cabelo
a fim de levar todas as desgraças do mundo
de volta pra tua cama
pra tua mesa, pro teu banho
a fim de deixar um gosto amargo na tua boca
e teus olhos secos
teus ouvidos zunindo
teus dedos formigando

acendi uma vela vermelha
que é pra tua sede durar 7 dias
tua fome ir só aumentando
a chama atrapalhar teu sono
trazer queimação pro teu estômago
fazer teu corpo suar frio

coloquei a estatueta de Jesus de cabeça pra baixo
num pote de merda de porco
junto com pedaços de unhas tuas
que é pra deus nenhum ouvir teus apelos
e milagre algum te alcançar

depois, de zombaria,
chamei padre, exorcista, freira e benzedeira
e no meio da reza
fiz um boneco de pano com tua foto 3×4
e marquei teu peito em brasa quente
com um crucifixo invertido

matei galinha, comi pipoca,
servi banquete com coração de boi
misturei sangue de virgem com cachaça
botei veneno de rato na água benta
alisei teu cabelo feito de palha
acendi um fósforo
e entre o cheiro de enxofre e de alfazema
te assisti queimar até as cinzas

fui expulsa do reino dos céus ainda criança
mas faz tempo perdi o medo do inferno
hoje o diabo sou eu
graças a deus

 

 

 

***

 

 

 

Sonho

 

sonhei que ia me mutilando aos poucos
primeiro arrancava todas as unhas
depois cortava um dedo da mão esquerda,
o menorzinho,
depois sumia com a pele dos cotovelos

arranquei a clavícula
quebrei as costelas
expus as tripas, o útero, o baço
no lugar dos seios, sangue
o coração nas mãos
depois também as mãos foram pro chão
com os braços, com o resto

desconstruí tudo que era sabido ser eu
até que enfim fiquei em pedaços
e acordei
sem pé nem cabeça

 

 

 

***

 

 

 

Brecha

 

não aprendi as coisas básicas da vida
ainda não sei dirigir
não sei nada de elétrica
não sei investir na bolsa
não lembro bem datas nem nomes da história
nem entendo muito
das coisas todas que são importantes
mas aprendi algumas coisas
talvez irrelevantes
como chorar quando alguém chora
e saber ler as pessoas muito bem
e a sentir
sentir muito, todos os sentimentos,
até os que não são meus
e entre a pilha de coisas que eu deveria ter aprendido
e a pilha de coisas que eu deveria desaprender
existe uma brecha pequena
onde eu durmo

 

 

 

***

 

 

 

Boca do estômago

 

das coisas todas que destruí
sobreviveu em mim esse sentimento na boca do estômago

têm sido dias estranhos,
o passado me visita nos detalhes do cotidiano

nunca mais ouvi uma chaleira apitando.
me sinto mal todos os dias por volta das cinco.
por que será que tenho fome mesmo de barriga cheia?

toda vez que faz frio eu tenho o mesmo pesadelo
e pelas manhãs sinto saudade
de uma versão de mim que talvez nunca existiu

 

 

 

***

 

 

 

tem uma coisa hoje que me atravessa

 

tem uma coisa hoje que me atravessa
e eu quero gritar de desespero
mas tem um bicho trancado na minha garganta
um gosto de sangue entre meus dentes
e, na língua,
uma palavra
atrasada

tem uma coisa, hoje, me comendo as entranhas
uma dor intensa no joelho direito
e eu quero chorar
mas tem um bicho pendurado na borda do meu olho esquerdo

tem uma coisa hoje que me atravessa
feito flecha, feito soco, feito poesia
uma dor
indescritível
invisível
infinita

mas tem um bicho sentado nos meus ombros
me dizendo
que é assim mesmo:

quando algo dentro da gente deixa de existir
o vazio nos atravessa

 

 

 

***

 

 

 

Sábado

 

Organizei as gavetas naquele sábado
Guardei as notas fiscais
Os poemas
As senhas
Cataloguei tudo que era importante
Aquela memória de 1998
Alguns desenhos
Chaveiros, ímãs, fotos
Joguei fora o que já não era (m)eu
Boletos pagos
Diários da adolescência
Emails impressos
Apostilas de francês (que nunca aprendi)

O que mais eu deveria deixar à vista caso morresse?
Passaportes
Certidão de nascimento
O número de telefone da minha mãe
A foto e as roupas que quero no meu velório
Meu livro não impresso semi-editado
(Seriam essas as minhas últimas palavras?)
as roupas e a coleção de Milan Kundera para doar
– sorte que não tenho muitos sapatos –

Sobrariam ainda algumas tarefas para o depois:
Alguém teria que devolver as minhas coisas no escritório
Transferir o dinheiro pouco que economizei e não usufruí
Cancelar minhas contas nos bancos
Desativar minhas redes sociais
Apagar os vestígios de mim que deixei
Sem querer
E mandar meu corpo de volta (pra onde?)

Quero que doem meus órgãos,
A pele, as córneas, tudo que sobrar de bom
– não é muito –
E que possam finalmente jogar meus pulmões no lixo
(enfim vou parar de espirrar!)

Se eu morrer nesse final de semana
Ou em qualquer outro
Mesmo que seja às sete da manhã
Já vai ser tarde

 

Bianca Grassi é uma artista contemporânea baiana que usa uma combinação dinâmica de materiais, métodos, conceitos e temas em sua arte. Formada em publicidade e propaganda com ênfase em marketing pelo IPA, em Porto Alegre/RS, é designer, ilustradora e escritora. Tem um conto publicado no livro Algumas Ficções (Editora De Leon) e poemas em revistas digitais como Mallarmargens, Literatura e Fechadura, Germina e Ser MulherArte. Desde 2016 mora em Praga, na República Tcheca.

 

 

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