Janela Poética IV

Marcelo Benini

 

Ilustração: Drika Prates

 

Flores de Kafka

 

As cores sequestradas
Mistificadas em jardins
Ciano, magenta, amarelo e preto
Adesivos, banners, catálogos, prospectos
Brindes, camisetas, painéis
Uniformes anunciam a impossibilidade
De não estar mais dentro daquelas cores
De viver além do azul ou do vermelho
De fugir da identidade
De jogar o corpo fora da escala.

 

 

 

***

 

 

 

Passarinho

 

Só sei fazer poemas com passarinho
Todas as palavras cabem em passarinho
Dor, por exemplo, é uma palavra que
A gente não pensa em passarinho
Mas dor é passarinho
Na palavra gaiola
Saudade é uma palavra passarinho
Que procura terras distantes
Deus é passarinho no mamão
Amor é a palavra passarinho disfarçada
De passarinho.

 

 

 

***

 

 

 

Degredo

 

Deste país nada sei
Nele não respiro
Moro no país das árvores caídas
Dos banheiros sujos
Das escolas que enganam
Tropeço nas manhãs sóbrias
E infames deste lugar
Que não reconheço
Quero as noites sem pátria
Dos copos vazios
Do país de ontem.

 

 

 

***

 

 

 

A visão iletrada

 

Leio meu país
Com a visão iletrada
E o sorriso envergonhado
Faltando dentes

O país onde só as solidões
Grandes podem existir

A dos meninos
Das estatísticas
E a das fronteiras
Distantes
Em territórios vazios
De país

Leio meu país
Com o coração dos que
Nada sabem
Trancados neste lugar
Imaginário

De montanhas para baixo
E cidades desabitadas

Na posta-restante dos extravios humanos
Nasci neste país
Imenso e imerso
Em mim.

 

 

 

***

 

 

 

Palíndromo

 

Encontro sombras nos olhos negros
Sob a copa da árvore
No fundo do rio
Posso sair do rio
Mas estaria sob a copa da árvore
Posso cortar as árvores
Lá estariam os olhos negros
Posso fechar os olhos
Só restariam sombras.

 

 

 

***

 

 

 

Retrato com abelha no cabelo

 

Escrevo o lado oposto de quem me lê
Nunca pensei ser compreendido
Senão por passarinhos e saguis
As frutas me ajudaram mais que os
Dicionários de verbos e regimes
E as gramáticas
As palavras com as quais me importo
Ciscam
O vento que escrevo está nas folhas
Dos buritis
Só faço versos que têm sopro
No coração.

 

Marcelo Benini nasceu em 1970, na cidade de Cataguases, Minas Gerais. Publicou “O Capim Sobre o Coleiro” (poesia/2010/edição do autor); “O Homem Interdito” (crônica/2012/Intermeios); Fazenda de Cacos (poesia/2014/Intermeios); “Currais Concretos” (poesia/2018/Intermeios); “Poemas do Núcleo Rural” (poesia/2022/Penalux). Vive em uma área rural próxima a Brasília/DF.

 

 

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