Janela Poética IV

Thais Campolina

 

Ilustração: Viola Sellerino

 

DEVER DE CASA

 

mesa sem poeira
pia seca
privada higienizada
roupa limpa e dobrada
cama feita
papel em cima de papel
dentro da gaveta
livro empilhado na estante
algumas canetas guardadas
outras, soltas
sempre sobra uma
alguma coisa

um objeto
de uma casa habitada
circula
como se vivo fosse

é carregado
pego
jogado no chão pelo gato
quebrado
colado com cola quente
guardado
até que esteja de novo
no lugar errado

 

 

 

***

 

 

 

TRANSILVÂNIA

 

as pessoas costumam comentar que eu viajo muito. não entendem que meu trajeto quase sempre é o de casa para casa. quem mora em duas cidades não mora em lugar nenhum. a estrada é um limbo. a outra cidade, em que você não está, age como uma sanguessuga. te cobra, te cansa, exige e barganha, te dá e te tira. precisa de você. não aceita que você se afaste por muito tempo. rosna para seus desgarrados.

a outra cidade é uma casa que você já não conhece bem, mas ainda assim sempre volta

 

 

 

***

 

 

 

CAIXA DE FERRAMENTAS

 

a mão cheirando a alho
cebola e refogados
também tem o odor
da tinta da caneta
ela mexe no detergente
liga computadores
digita 40 palavras por minuto
faz bolo
despedaça o pão
recorta cola rasga
e se toca
sem nunca esquecer de fazer exercício para evitar ler
o acidente de trabalho da modernidade
e da escritora

 

 

 

***

 

 

 

ESQUEMA DE PIRÂMIDE

 

vou ter que dizer
o tempo é outra parada
um verdadeiro massacre
às três horas da manhã

o auge da neurose
a metade da besta
a matemática pura
a assimilação do fim
de um pedaço de bolo
guardado tempo demais
na geladeira

 

 

 

***

 

 

 

BACKLASH

 

desaprendeu a engolir sapos
rãs e salamandras
a perereca agora possui caninos
e ataca
sem pudor
quem avança

 

 

 

***

 

 

 

de cor

 

escrevi esse poema de memória
porque eu ainda estava dormindo quando ele surgiu
anotei cada palavra no reino dos sonhos
como cecilia pavón me ensinou
tomei cuidado para mantê-lo curto
o acordar é abrupto
e sempre há risco de esquecer

a poesia é sonolenta e tem bafo matinal

 

Thaís Campolina nasceu em Divinópolis – MG em 1989 e, após 8 anos morando na capital mineira, recentemente retornou para sua cidade natal. Bacharel em Direito, pós-graduada em Escrita e Criação, medeia, organiza e faz curadoria do Leia Mulheres Divinópolis e é a criadora e faz-tudo do clube de leitura online Cidade Solitária. Após ganhar o 2° lugar no concurso Poesia InCrível de 2021, estreou na poesia com o livro “eu investigo qualquer coisa sem registro” pela Crivo Editorial. Também publicou o conto “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija” em formato e-book na Amazon.

 

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1 comentário

  1. Não me canso de ler os poemas de Thaís, sempre tenho o mesmo encantamento da primeira vez.

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