Janela Poética V

Renata Ferreira

 

Ilustração: Sadrie

 

forma de vida

 

o animal em mim
morto
fede
mas não abandona o corpo
que segue
ereto
na medida do orgulho
os pés
cansados
fingem
uma humanidade
desmedida
enquanto
a cabeça
molde perfeito
sorri
do inferno
que a sustenta

 

 

 

***

 

 

 

desassossego

 

se desperto, ânsia
clarão desassossego
luz que entra
devora-me/ devoro-a
anseio o fim
canção diária chamada desejo
martelando os dias
um turbilhão
arrasta-me para longe
ainda estou dentro de mim

 

 

 

***

 

 

 

construção

 

demoliram a casa:
desenho tristezas nos escombros memorialísticos,
[minha obra humana]
pés cansados percorrem o terreno,
já não são os mesmos,
incharam.
os sapatos apertam,
estão vivos,
caminham sem mim,
bailam com o passado,
[enquanto me enchem de calos perversos]
não poderei usá-los no futuro…

 

 

 

***

 

 

 

tempo

 

a velha cicatriz ainda coça
compete com a novíssima
[duas semanas de vida]
uma,
nas mãos [infância]
outra,
no joelho [adulta]
um corpo
qual coçar primeiro?

 

 

 

***

 

 

 

moinho

 

verto poemas esquizofrênicos
enquanto vomito saudade
tenho medo da perda
lambo o chão
já não sou eu
não sei quem sou
[ele disse: “um dia de cada vez”]
um enorme espaço de tempo
separou o abraço
solidão a dois é mais latente
tritura
tudo

 

 

 

***

 

 

 

leitura

 

não encontro no teu rosto o que preciso,
teus olhos incolores filtram o brilho dos meus,
teu cansaço diário pesa em mim,
a força que destina ao tédio me abala.

não encontro em tua atenção um espaço,
espaço confortável com móveis audíveis,
a negritude dos teus cômodos tira minha visão.

abro as janelas, a luz do sol se afasta,
num movimento de estar sem estar,
brinca de esconde-esconde.

a procura é infinita,
perdi-me em tua vida.
isto não é poético,
apenas uma prisão em forma de poema,
prisão-lar.

 

Renata Ferreira nasceu e vive em Duque de Caxias(RJ). Formou-se em Letras pela UERJ— onde cursa jornalismo—, e é mestranda em Estudos de literatura pela UFF. Prepara seu primeiro livro, “Clarão Desassossego”.

 

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