Janela Poética V

Sofia Ferrés

 

Desenho: Felipe Stefani

 

REPOUSO

 

nos deitamos
e o silêncio repousa.

tua voz molda no ar
o cheiro que a noite
trará em você.

abandonamos roupas
os ossos, as reflexões,
abstraindo tudo o mais.

então as sílabas tropeçam,
desabitadas.
o amor enfreia as palavras.
este quarto há de nos enterrar:
a luz vai se fechando sobre nós
como um abraço e finda.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

PRECE

 

meu querido
esta é a noite da saudade.

pura intolerável, no jardim
das coisas ocas, sob a lua
lume do cheiro deixado na pele
da camisa branca – tão branca
que paira no ar da respiração.

ladeio a vela baixa e
testemunho o corpo
que não veio mas está
tão perto
emanando qualquer coisa
entre a mão e o peito
na chama dourada,
no contorno da noite

então caminho pela rua de preces
que quebra aos passos da espera.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

NOVO

 

neste novo Tempo
todas as figuras
como que são
outras coisas:
muito mais belas
que o imaginado
– à imagem dos deuses.
a relva é mais verde
aberta
o rio aceso
livre livre livre
em seu caudal
correndo
pelas mãos do vento
ao rumor de pedras
fasto
de antiga cal alcalina
onde constrói morada
o Coração da água

no interior de cada coisa
húmido ainda
também habita
o primeiro Sol

 

 

 

 

***

 

 

 

 

EM BRANCO

 

se as noites parecem iguais
cada dia é uma construção.
celebro a cada esquina
o que se antecipa:
alguns encontros
rostos arqueados
mãos prateadas
frases eventuais.

um mundo página em branco.
amo os dias de antemão
e escrevo-os,
palavra por palavra.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

recebi teu livro
do pacote ao abri-lo saiu um cheiro de éter
deve ser da tinta impressa
presa
ou das palavras
hospitalizadas

senti tontura o dia inteiro

 

 

 

 

***

 

 

 

 

Ignoro despreparada as notícias do mês.
O funcionamento da opinião pública não me convence
(esboços de sociedade).
Nem a utilidade de uma revelia
contra o sentido inverso destes dias

Pudicamente,
examino as fases da lua sobre meu signo
(forças primordiais de reinos mais sutis)
Aprecio o brilho difuso do metal manchado
A rachadura da argila enquanto seca
A ordem cósmica de uma mandala hindu
, ou do teto de uma catedral europeia.

A cor e a metamorfose da sua existência
me faz pensar que toda árvore é uma igreja

 

Sofia Ferrés é natural de Montevideo (Uruguai), tem poemas publicados nas páginas literárias Palavra Comum, A BacanaVoz da Literatura, Ruído ManifestoLivre OpiniãoOficina Irritada, na Eufeme Magazine de Poesia nº12 (Portugal), e na Revista Laranja Original (Brasil). Possui formação na área de Artes (Politécnica de València), Exatas (Unicamp) e Sociais (Boston University), lançou “O Pequeno Livreto de Haicais” pela Oficina Tipográfica de São Paulo (2017) e “En_vuelta” pela Editora Laranja Original (2018), relançado em Porto na livraria Flâneur. O livro foi finalista no Prêmio literário Glória de Sant’Anna 2019.

 

 

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