Janela Poética V

Alex Simões

 

Pintura: Canato

 

um poema para Oxóssi


a Augusto Soledade, a partir da lenda yoruba recolhida por Pierre Verger
 

certa feita, o Rei de Ifé,
vulgo Olofín Odudua,
como era de costume
fez a festa dos inhames,
proibindo que seu povo
comesse desse alimento
antes da celebração
mais esperada do ano

não que fosse um rei cruel.
essa tal interdição
se fazia necessária
garantindo que a colheita
fosse próspera e seu povo
tivesse acesso ao alimento
importante para o reino
que hoje fica na Nigéria.

e eis que chega o grande dia:
Olofín estava sentado,
vestido pra ocasião,
cercado de suas mulheres
– um rei podia ter muitas –
e também de seus ministros
cujos conselhos valiam
tanto quanto uns bons inhames.

como fazia calor
que atraía muitas moscas
os escravos de Olofín
– um rei podia ter muitos –
ao mesmo tempo o abanavam
e espantavam as tais malditas
de modo que o rei tivesse
o conforto merecido

e pudesse apreciar
toda a beleza da festa,
tudo feito em seu louvor:
os tambores que tocavam,
os cantos que entoavam,
os incensos que queimavam,
as mulheres que bailavam,
homens dançavam também.

todo mundo reunido,
conversando alegremente,
fofocando e paquerando,
festejando a vida farta,
comendo os novos inhames,
bebendo vinho da palma,
uma bebida africana,
até não mais aguentar.

só que um fato muito estranho,
antes nunca acontecido
em nenhum reino de África
se abateu sobre essa festa.
de repente escureceu
quando ainda era dia
e quando olharam pro céu
todos ficaram espantados

um pássaro gigantesco
sobrevoando Ifé
resolveu, assim, do nada,
pousar bem exatamente
sobre o teto do palácio
justo no prédio central
onde ficava o pátio
em que a festa ocorria.

acontece que o abutre
lá não estava por acaso
ele obedecia as ordens
das terríveis feiticeiras
as Ìyámi Òṣòròngà
donas de todos os pássaros
que usavam ao bel prazer
pra fazer suas maldades

logo que caiu a ficha
de onde veio a maldição
mais ainda apavorado
o povo de Ifé ficou.
o conselho de ministros
logo se reuniu com o rei
para resolver de pronto
a terrível situação.

matutaram, matutaram
e lembraram dos “odé”
– em iorubá, “caçador” –
que também são os “oxó”
– “guarda”, em língua iorubá,
já que o caçador tem armas
e a destreza para usá-las,
deles vinha a solução.

foi então que convocaram
o temível Oxotogun,
caçador das vinte flechas,
oriundo de Idô,
que chegou paramentado
com uma bela vestimenta,
seu grande arco e suas flechas
miradas ao alvo em vão

mas alguém lembrou que tinha
outro odé mais temeroso.
foram buscar em Moré
o bravo Oxotogí,
o das quarenta flechadas
atiradas para nada.
nem de raspão uma delas
atingiu o grande pássaro.

a terceira tentativa
veio lá de Ilarê:
o das cinquenta flechadas
chamado Oxotadotá.
igual aos anteriores,
chegou se achando o tal,
tirou onda e prometeu
o que não logrou cumprir.

acontece que uma caça
não depende tão somente
de destreza e habilidade
de um nobre caçador
tem de pedir proteção,
saber a quem de direito,
que comidas, que palavras
entoar e oferecer.

foi quando Oxotokanxoxô,
o de uma flechada só,
veio acudir Ifé
ao tempo que sua mãe,
lá na vila de Iremã,
pediu a um babalaô
que protegesse seu filho
e que o mal não lhe abatesse.

na consulta ele lhe disse:
“o seu filho está a um passo
da morte ou da riqueza,
faça uma oferenda e a morte
há de se tornar riqueza”.
ela pegou uma galinha
e a ofertou em sacrifício
às terríveis feiticeiras.

fez a oferta na estrada,
abrindo o peito do bicho.
com o respeito à natureza
e às ordens do Orun,
ela repetiu três vezes
o que o sábio lhe ensinou:
pois “que o peito do pássaro
receba esta oferenda”.

e foi que na mesma hora
que ela despachava o ebó,
seu filho lançava a flecha ,
a sua flechada só.
e eis que o pássaro gigante
abre o peito pra oferenda
feita pela mãe do Odé
de modo que relaxou

e ao invés da oferenda
recebeu de peito aberto
de Oxotokanxoxô
a sua flechada certeira
se debatendo de um lado
caindo pesadamente,
fazendo a terra tremer
e logo depois morrendo.

foi assim que o odé oxó
aclamado pelo povo
foi chamado popular,
que é o que quer dizer seu nome:
“Caçador é popular”
Oxóssi, okê arô,
caçador que é Rei de Kêtu,
viva Oxotokanxoxô!

 

 

 

 

***

 

 

 

sessão de poesia para a tropa[1]

 

a Gilberto Natalini

 

eu era muito jovem e escrevia
poesia e as minhas poesias… tinha
poesias românticas, de protesto
contra o regime. eu era um poeta
razoável. depois eu desisti.
escrevia poemas que cobravam
dos generais, dos coronéis e tal…
escrevia sobre a libertação
do Brasil, sobre a liberdade, sobre
a tal democracia… até que um dia
ele me pegou, que dia foi, não
lembro…me despiu, me colocou
em pé sobre uma poça d’água, o fio
desencapado e atado em meu corpo
foi ligado por ele, que chamou
pessoalmente a tropa, a sua turma:
torturadores, uns soldados que
tomavam conta ali, eis a plateia,
a quem supostamente eu deveria
fazer declamação de poesia.
uma sessão de poesia para a tropa
na qual eu declamasse o que escrevia
contra o regime para os que a favor
me escutassem. e ficou lá por horas
com uma vara na mão que eu não lembro
exatamente o que era: um cipó,
alguma coisa com que me batia,
ele mesmo, pessoalmente, ali,
enquanto coordenava os outros a dar
choque, o fio desencapado e atado
no corpo do que era então poeta
recebendo telefones que não
aparelhos de comunicação,
mas muitos tapas dados com as mãos
sobre os ouvidos em posição côncava
numa sessão de poesia e eletrochoque
em que não declamava, mas ouvia
zumbidos de tortura e as risadas
que hoje só escuto parcialmente.
uma democracia por um fio
desencapado e atado em um corpo
que já não mais escreve poesia,
porém ouve os zumbidos da tortura.

_______________________________

[1] shorturl.at/np489

 

 

 

***

 

 


damarianas

 

 

I

se o habitat faz o monge
quem visitou a oca do poeta
outorga-se o habite-se da taba
onde a palavra mora se não nela
mesma pergunta que outra me deflagra

 

II

se a casa da palavra fica ao longe
lá onde mora agora o que não nela
a moça barda que é uma monja às pressas
se não habita lá a vida é bela
ela inter(p)ela:
longe de onde?

 

III

eu nem sabia nada
nada de onde aquilo ia dar
o que importa é que ele estava lá
antes que eu era
grafando nos cartazes mal me lidos
por entre umas vitrines tinha livros
e uns versos feitos pra dependurar:
deu-me origamis de papéis dispersos
não só suspensos: fáceis de(s)dobrar

 

IV

poemóbiles
orai pros natos nobilis
e as folhas podres dos bares avulsos
postando cibersóbrios veredísticos
sobre a nossa eterna embriaguez
de que só doma a razão em sendo louco
caso algo morra que não seja a plêiade
que só tenho certeza o seu talvez

 

V

e pelo exposto me interessa menos
acertar de onde viemos
do que errar para onde nós v(o)amos

 

 

 

***

 

 

 

pólen de flor

 

para Blande Viana

 

uma vez a
professora de botânica
estranhou
o fato de ter visto
uma placa
que dizia
VENDEMOS PÓLEN DE FLORES.
“de que mais haveria de ser?”,
ironizou.

o que me fez pensar primeiro
em polens das flores de plástico
alimentando gerações de abelhas mecânicas,
substitutas das suas matrizes
em adiantado processo de extinção.
elas, as extinguíveis, vão nos levar a todos,
dizem
.
.
.

um par de semanas depois,
lembrei que livros de poemas
gostam de miolos com papel
pólen
……………………………….soft
……………………………….&
……………………………… bold

nome que talvez se deva a sua cor
amarelada
e que reflete menos luz,
proporcionando uma leitura mais confortável.

oxalá
estas palavras percam sentido
num futuro cheio de
polens
de
flor

abelhas
&
leitores.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

era

 

para Antonia Avelina Ninha, in memoriam

era
3 anos mais velha
10 quilos mais gorda
um tanto mais alta
gostava de me pegar pelos braços
girar girar girar
………………………………&
…………………………………..s…………o…… l……t…..a…..r
um dia
……………………..as costas na pedra grande da rua

estrelas piscando num fundo vermelho
soltaram faíscas

e então
perdi o medo
……………………..de
re
……..vi
………….dar

 

 

 

 

***

 

 

 

 

A Educação pela Pedrada

 

para Jorge Augusto

 

Porque a pedrada é pra: pegar visão;
para aprender na tora, é uma bala
a queima-roupa, um cachação verbal
(um cínico litotes, uma fala
neg-afirm-ativa, pedagogia
da dura, do chepo, não burilada,
nem bostética, a ideia reta
sem nada de caô, que vai na lata),
lição da pedrada que vai pro centro
da periferia e a tudo empala.

Outra pedrada educativa: o não,
(do centro pro gueto, bem antipática)
pra aquele que não sabe se ligar
(e talvez não adiantasse nada)
que dar pedrada na selva de pedra
é faísca no paiol da barricada.

 

 

alexsim é um poeta criado na avenida Bahia, número 1, Fazenda Grande do Retiro, Salvador, meu amor, Bahia. é também performer, professor de português para estrangeiros e revisor de textos alheios, entre outros. publicou alguns livros, o último intitulado trans formas são. às vezes traduz, critica, resenha, edita e torna público o que faz. às vezes, troca de pele e de nome.

 

 

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