Janela Poética V

Ângela Coradini

 

“A prisão da alma”: Claudio Parreira

 

29.

 

há coisas tão bonitas
ditas com seus olhos
que devia,
como já faz,
desenhá-las na minha história
e mais,
em mim

 

 

 

***

 

 

 

31.

 

e prendo na memória
o vo-lu-me
das suas palavras
reouço, ouço,
lambo
o tom da sua voz
e a graça
nunca se gasta

 

 

 

***

 

 

 

32.

 

o que mais desejo
é que o que me toma
sobre você
seja só desejo

que seja uma piada espúria
um rouco choro
uma tristeza forasteira
uma sede de saliva
que me nega todos os dias

que seja apenas efêmero
e que me coma
só agora
um pedaço de vida
do riso
do cérebro

que suas ignorâncias
dias sim, dias nãos
me arranhem a sensatez
como você
me arranha
a carne

que me aperte
ao invés de entristecer
que deixe suor nos corpos
e não sombras sob meus olhos

que esse seu maldito riso
endoidecido
quando me mira doida
sobre você
embebede
minha língua
minha vida

que você seja corrosivo
e que com seu grito leve
sua voz breve
deixe sob as minhas unhas
sua pele

desejo de infinita sorte
que se chame apenas paixão
que seja, assim só,
espasmo de pequenas mortes

que será árduo
e irresistível
que leve de mim a luz
me tire do silêncio
que cobre cada curva
me arranque o medo

desejo que tudo que saia de mim por você
seja perto daquilo que leva o nome de ligeiro

que me consuma
o sexo
em fogo
e ausência de ar

que me rasgue
o dia
que me queime
e deixe para o vento
só pó
e mais nada

e se só você me deixar
a ruminar esse desejo
rogo que não sejam seus dentes
irreversíveis
porque quero poder enfim
num dia, talvez,
soprar suas cinzas
todas elas
de mim

 

 

 

***

 

 

 

e
prendo
na memória
o ritmo
dos versos
de todos os teus
não ditos

 

 

 

***

 

 

 

o tempo desafinou
e você estava lá
estando apenas em você

 

 

 

***

 

 

 

que não eu

 

era meio da tarde,
e sob a luz esbranquiçada
que criava sombra sob os seus olhos,
testemunhei sua boca explodir numa curva festiva
um leve balanço no rosto
um riso mudo
desacelerando em uma expressão de ternura

e eu senti ciúmes

ciúmes do emaranhado de coisas
atrás daquela tela para a qual você sorria
que não eu

 

 

 

***

 

 

 

não venha mais

 

trazia um bilhete entre os dedos
deixou-se no centro da sala, soturna
sem soluçar, sem desabar sobre nada
escorregou o papel pela mesa
três palavras escrita
“não venha mais”

adorava o passado do papel na madeira
odiava a alma molhada na face dela
ultimas palavras, última atenção
tudo ressoava a mesma agonia

e no verso do mesmo bilhete
com o lápis de alumbrar seu olhar
ela escreveu, no verso da dor

“(…)
e são horas mortas
nós vencidas
cada nota dessa lamúria
dá cor a minha sangria
ritmando a farsa dela

e no embalo do que nos toca
entrando pela fresta dessa porta
sinto a amargura apertar

entregue e pedante ela
emparedada eu
presa na minha mania de amortecer
e enquanto ela se vai em tempo
peço perdão, mais uma vez, ao medo”

 

Ângela Coradini é uma contadora de mentiras na poesia, na teoria e nos roteiros audiovisuais. Tem doutorado em Cultura Contemporânea (UFMT) e é editora na revista eletrônica Ruído Manifesto. É autora dos livros “…já não podem ser amanhã” (Carlini Caniato, 2020), “Imagens-Espectro de Futuridades no Amplo Presente” (Edufmt, 2020) e “Quatro nós” (Carlini Caniato) no prelo.

 

 

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