Jogo de Cena

Nastácia: notas sobre a emblemática personagem de Dostoiévski

Por Vivian Pizzinga

 

Foto: Guto Muniz

 

Nos palcos do Teatro III do CCBB está em cartaz um espetáculo de fôlego e de suma importância. No ano em que dados mostram um aumento nas taxas de morte por feminicídio no Brasil, Miwa Yanagizawa dirige Nastácia, peça teatral e instalação artística que traz dramaturgia de Pedro Brício. A peça é baseada na personagem Nastácia Filíppovna, cujas violências sofridas e silenciamento imposto por uma sociedade amplamente sexista são abordadas por Dostoiévski em ‘O idiota’.

No palco, a idealizadora do projeto, Flávia Pyramo, interpreta uma Nastácia acima de tudo sarcástica, segura de si, convicta de seus próximos passos, corajosa para mudar o destino que a vida dedicou a si e a se reinventar, dentro do que era possível na cultura da época. Ao lado do sarcasmo, da segurança, da disposição para a ruptura, encontramos a tristeza, a mágoa, o ressentimento. A dor. Ao seu lado, Julio Adrião interpreta Totski, o tutor proxeneta de Nastácia, e Odilon Esteves encarna Gánia, o pretendente da protagonista em um casamento-negociata que está planejado para ser firmado na festa do aniversário de Nastácia e que estabelece em 75 mil rublos seu valor. Apesar de um tema pesado, a peça intercala os momentos mais densos com outros mais leves, engraçados até, conduzidos em geral por Gánia, que vai mostrando aos poucos certa gaiatice no decorrer do espetáculo.

Para começar, os espectadores entram na sala já imersos em um clima que se inicia nos corredores, com uma iluminação vermelha que parece preparar a atmosfera densa em que acontecerá a peça. Mais tarde poderemos entender um pouco mais a respeito do motivo da cor vermelha no corredor, pois voltaremos a ele, o que não comentarei com mais detalhes aqui para evitar spoiler. Essa é a parte instalação da peça, uma surpresa concebida de forma original e que espera a todos. De qualquer modo, o clima criado no corredor com uma solução simples que transforma a iluminação original em uma luminosidade rubra faz bastante diferença na promoção de um clima psicológico naqueles que vão assistir à peça, lembrando-nos as razões pelas quais ouvimos que o teatro é um mundo mágico. A direção artística de Ronaldo Fraga e a iluminação de Chico Pelúcio e Rodrigo Marçal são responsáveis pela composição desse clima.

 

Foto: Guto Muniz

 

O cenário é deslumbrante. As cadeiras estão dispostas em três lados do retângulo do teatro, e nelas nos distribuímos, como se fôssemos convidados de Nastácia. Ela conversa conosco, dirige-se a nós, nomeia alguns dos espectadores e a participação do público, aqui e ali, também tornam o espetáculo mais leve, pois essas se tornam passagens engraçadas. No alto, uma miríade de molduras de quadros e retratos, em sua maioria vazios, mas alguns deles com cenas e personagens em posições de morte. No centro da cena, as mesas com os quitutes da festa – os acepipes – cadeiras e alguns objetos curiosos. Nastácia está se preparando para a festa que, logo mais, irá acontecer.

É possível dizer que o sumário da trama acontece quando a personagem é trazida em um carrinho puxado por um dos outros personagens, que a exibe e a descreve como se de fato estivesse tratando de um objeto a ser comprado. Agora com um belo vestido roxo, com uma grande etiqueta à mostra, fica mais evidente que Nastácia está ali para ser vendida, trocada, negociada. A mulher não passa de uma mercadoria. A etiqueta simboliza seu preço.

E é em torno desse aspecto e das demais violências que Nastácia sofreu ao longo da vida que os diálogos e jogos da festa irão girar. Gánia diz querer se casar com Nastácia e parece servil em relação, mas confessa seu interesse financeiro na jogada. Totski, que a tornou sua concubina durante toda a vida, desde a infância, pede desculpas sem, no entanto, reconhecer verdadeiramente sua culpa, cindindo-se entre razão e volúpia, em que a segunda domina todo o resto com facilidade. Tenta convencê-la de que não podia controlar seus impulsos voluptuosos, não parecendo ter real arrependimento ou vergonha face ao cativeiro em que isolou Nastácia. Por outro lado, segue tratando-a como um objeto cuja posse é sua e de mais ninguém. Nastácia serve aos seus prazeres ou aos seus caprichos, a depender do momento. Pode, inclusive, dela se desfazer quando julgar que não lhe serve mais.

 

Foto: Guto Muniz

 

Uma das escolhas interessantes da equipe são as referências constantes ao Rio de Janeiro ou ao ano de 2019. As semelhanças mostram o quanto de 1869 para cá – ano em que a obra foi finalizada – a violência contra a mulher não mudou tanto. Há um momento em que Nastácia aponta paras as molduras de retratos que, em conjunto e do alto, emolduram o cenário da peça, e vai enumerando nomes de uma série de mulheres afetadas por atos de violência. Cita, ao lado de outros diversos nomes, Maria da Penha, que deu nome à lei que busca punir os diversos tipos de violência perpetrados contra mulheres. Não poderemos nos esquecer de que são muitas as histórias de mulheres que passam por situações de violência física e sexual, algumas dessas levando-as à morte. O tom do espetáculo, embora não seja o de militância, parece voltado a isso, a esse lembrete, à recusa de que nos esqueçamos desses nomes e dos atos violentos que os atingiram. À recusa de que nos esqueçamos da vereadora Marielle Franco, executada em março de 2018, mulher preta, lésbica, mãe e favelada, como ela própria se denominava.

Há um outro momento interessante, digníssimo de ser mencionado e que não configura spoiler: é quando Nastácia irá se casar e precisa da ajuda de algumas pessoas para vestir o tradicional vestido de noiva. Ela chama três homens da plateia para que a ajudem. Esse simples gesto, que parece desprovido de qualquer significação, é, entretanto, genial. Estamos acostumados a situar as pessoas em determinados locais e funções conforme o gênero (e também a raça, embora essa dimensão não tenha sido trabalhada na peça). O que normalmente acontece em uma situação como essa é a de mulheres ajudarem a noiva a se vestir. São elas que vão ajeitar o véu, colocar o vestido, aprumar a barra da saia, rodear a noiva, talvez auxiliá-la na maquiagem, no penteado. Mas a Nastácia de Flavia Pyramo recorre aos homens da plateia. Eles é que irão fazer tudo isso, por mais atrapalhados que pareçam, à primeira vista. Sim, serão atrapalhados, tanto quanto uma mulher que nunca tenha ajudado uma outra a se vestir de noiva poderia sê-lo. Não está dado que eu, por exemplo, no lugar de um daqueles homens, me sairia melhor (e certamente não me sairia!). Sendo algo inaugural para uma mulher e para um homem, todos poderiam estar claramente pouco familiarizados com os gestos a serem escolhidos para que o vestido entre na noiva. E se esses homens sempre fizerem isso e tornarem tais gestos seu ofício frequente, eles estarão em casa quando chamados ao palco para ajudar uma noiva a se preparar para seu casamento. O interessante dessa cena aparentemente sem importância no conjunto da peça é que se Nastácia tivesse chamado mulheres para ajudá-la, nem eu nem as outras mulheres da plateia estranharíamos. Ou, pelo menos, não a maioria de nós. A cena me salta aos olhos e me leva a trazer ao texto como comentário importante porque eu também estranho, eu também me surpreendo, e me surpreendo positivamente. Nastácia, ao chamar os ajudantes de palco, não especifica para o  que é, diz apenas que precisa de homens para ajudá-la, e de fato eu esperava que fosse algum trabalho pesado, como talvez arrastar algum dos objetos para ampliar o espaço para a próxima cena, por exemplo. Em verdade, é uma dupla surpresa: primeiro, com a cena, instigante em toda a sua sutileza, e, em segundo lugar, comigo mesma, por estar surpresa com a escolha, por ter esperado mulheres para aquela função, por ter achado que, quando ela pediu a ajuda de homens, seria para outra coisa, e não para algo delicado como a preparação de uma noiva.

 

Foto: Guto Muniz

 

Mesmo que o resto da peça não tivesse trazido nada de interessante, essa cena já teria valido todo o espetáculo. São camadas e mais camadas arraigadas de patriarcalismo e sexismo (além, claro, do racismo) sedimentados em todos nós, mesmo que sejamos feministas, anti-sexistas ou adeptos de qualquer política social e de luta. Mesmo que sejamos progressistas e lutemos por isso, ainda caímos em nossas próprias normativas culturais, em nossas armadilhas sociais. E às vezes sequer nos damos conta disso. Para as mulheres, é mais fácil perceber as violências mais ou menos sutis promovidas pela cultura patriarcal e sexista, os destinos impostos de antemão, a falta de flexibilidade de papéis que afeta uma mulher. Para os homens, isso não é sempre percebido, ou não o é em sua profundidade, e eles muitas vezes silenciam as mulheres, por não viverem na pele o que o patriarcalismo e a violência do sexismo causam. Nem todos o fazem por mal. Assim como para pessoas negras é mais fácil perceber o racismo estrutural, institucional e cotidiano de nossa cultura, enquanto que para mulheres e homens brancos, por mais antirracistas que supostamente sejam ou acreditam que sejam, tampouco é tão imediata a percepção de gestos, falas e atitudes racistas. O silenciamento também acontece aí. E com frequência. Muitos não fazem por mal, mas já passou da hora de aprendermos a escutar o outro melhor.

No entanto, como diz bell hooks, a escritora negra norte-americana, é preciso “erguer a voz”. Ela se refere às mulheres negras vítimas de violência racial. Mas podemos estender o seu exemplo a outros grupos, certamente. Mulheres brancas, pessoas negras, grupos LGBTQi, refugiados, pessoas com diagnósticos de transtornos mentais graves, quaisquer pessoas em situação de vulnerabilidade social precisam erguer a voz. E todos nós precisamos ampliar a escuta. Neste sentido, Nastácia é uma ótima opção de espetáculo teatral para assistir no Rio. Além de excelente dramaturgia, de qualidade na produção, de ótimas interpretações e momentos engraçados e de reflexão, o espetáculo é mais um produto cultural que nos permite erguer a voz. E quanto mais se ergue a voz, mais se pode mudar alguma coisa, mais a violência pode ser vista e ouvida e, por conseguinte, dirimida.

O único porém que eu colocaria é que a peça poderia ser um pouco mais curta. Uma vez que já possui a densidade característica de um texto russo, ainda que salpicado de leveza e humor, mereceria alguma edição em algumas partes (talvez o começo, principalmente, e alguns momentos das cenas que se encaminham para o final, excessivas), para que não se torne cansativa ao fim e ao cabo.

 

Vivian Pizzinga lançou os livros de contos Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2013) e A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015), além de ter participado de algumas coletâneas, sendo as mais recentes, Cada um por si e Deus contra todos (Tinta Negra, 2016) e Escriptonita (Patuá, 2016). Trabalha também com psicanálise e Saúde do Trabalhador.

 

 

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