Jogo de Cena

Mostra a tua cara: o acerto de contas na peça Realpolitik

 Por Vivian Pizzinga

 

Cena de Realpolitik / Foto: divulgação

 

Pedro Osório e Oscar Calixto estrearam, em 9 de setembro de 2022, o espetáculo “Realpolitik”. O texto inédito é da premiada autora Daniela Pereira de Carvalho. A acertada direção é assinada por Marcello Gonçalves. A peça, apresentada em lugar inusitado, ficou em cartaz até 30 de outubro, e 30 de outubro de 2022 é 30 de outubro de 2022, mais autoexplicativa essa frase não pode ser. Assisti à peça nas vésperas do primeiro turno das eleições, é disso que se trata. Havia uma grande confusão nos gps dos táxis da cidade, pelo menos 4 deles, segundo informações colhidas, indicavam o endereço errado. Isso ocorreu não só comigo, na ida e na volta, como também com outras pessoas que, ao final, comentaram esses contratempos, na calçada em frente ao prédio da peça, na Presidente Vargas. Parece besteira, mas tudo isso faz parte daquilo que chamei de “rolê da peça”. Mas calma. Vamos aos poucos pra que a gente possa entender a importância do espetáculo, algumas de suas peculiares características e o excelente programa, pra quem gosta de dramaturgia, que Realpolitik certamente é.

Apontando o básico do enredo, sem dar spoiler, a trama diz respeito a um acerto de contas. Há um CEO que é o responsável pelo rompimento de uma barragem e pelas consequentes mortes de 150 pessoas (aquelas de que se tem notícia, pois em um acidente, qualquer acidente, nunca podemos afirmar o número de mortes com certeza, haja vista Chernobyl), sem contar todos os outros problemas que um tal acidente acarreta: problemas de ecossistema, de economia local, problemas sociais, enumerar é cansativo e gera tristeza. O jornalista que vai atrás do CEO adentra o escritório do ricaço, num prédio enorme de um centro comercial, e aí já começamos por uma característica interessante da peça: a produção se dá, ela também, em um prédio comercial que fica na esquina da avenida Presidente Vargas com a avenida Rio Branco, o principal entroncamento comercial do Rio, um ponto de muvuca, barulhos e fumaça que todo carioca depois de certa idade teve de enfrentar. Reproduz-se no real espaço onde se dá o espetáculo aquilo que é contexto e cenário do enredo. Fugindo, portanto, aos espaços cênicos tradicionais, assistimos à peça no 14º andar desse prédio, após subirmos elevadores espaçosos como não é tão costumeiro ver, mesmo em prédios como esse no centro do Rio. Lá de cima, enquanto aguardamos, podemos ver uma parte da confusão do centro se nos aproximarmos da janela: lá embaixo, desenrola-se um naco da confusa Rua Miguel Couto. Há também a exposição do artista plástico Victoriano Resende, por outro lado, que ocupa o espaço com uma exposição aberta ao público e que resultou numa intervenção no cenário da própria peça.

Outra curiosidade é que a peça, segundo Pedro Osório, foi escrita no decorrer da pandemia de Covid-19, essa que ainda não acabou de todo, e a ideia, segundo o ator, foi pensar “em como, após as grandes tragédias, os responsáveis pelas empresas tinham que lidar com as questões humanas, éticas, morais e financeiras”. Desse modo, é disso que se trata o acerto de contos em torno do qual o enredo gira, isto é, a peça que é um thriller, com seus momentos de tensão, de surpresa, de susto, com seus outros momentos de virada e de humor. Sempre algum humor é possível, nem que seja o escárnio comedido de si mesmo, no meio da dureza da vida e das histórias.

Todas as características mencionadas são uma maneira que reúne a oportunidade de que o público possa ter uma experiência além do teatro. Mas, em termos de teatro, naquilo que concerne ao tratamento dramatúrgico conferido à trama, estamos muito bem: Oscar Calixto e Pedro Osório estão ótimos, em preciosa direção de Marcello Gonçalves. Se eu pudesse fazer um adendo, como alguém que entende mais de texto (bem mais, muito mais, imensamente mais) do que de teatro, talvez a fala de Pedro Osório possa contar com palavras menos caracterizadas por sua forma escrita e mais próximas do oral e do coloquial. Mas isso seria o mais simples de ajustar, se fizer sentido ajustar alguma coisa. Pois, naquilo que me parece mais difícil, ou seja, no que tange aos ritmos e aos silêncios, algo que acho às vezes mais raro de encontrar nas peças que tive a chance de assistir, Pedro e Oscar estão perfeitos. Não ficamos com a incômoda sensação (que pode gerar uma falta de fôlego quando estamos assistindo) de que há um desespero para falar todo o texto antes que ele seja esquecido (a sensação pode não corresponder à intenção da velocidade na fala, nem mesmo à realidade, mas é essa a sensação que às vezes tenho quando estou ouvindo os atores e as atrizes em suas verborragias textuais, não só no teatro como também em séries, em especial as estadunidenses). Todos nós falamos de forma atropelada e pausada, a depender da circunstância, todos nós intercalamos ritmos e convicções, a prosódia é movida a algum cadência e raras vezes se assemelha a uma metralhadora giratória; todos nós falhamos na dicção, cometemos lapsos, isso é vida e é sujeito e é inconsciente e é afetação. Que possa ser reproduzido nos diálogos dos personagens, é fundamental, e isso acontece muito bem entre Henrique e Rafael, a dupla que duela no 14º andar de um edifício comercial. Porque uma das coisas que às vezes cansa esta espectadora que vos escreve (falo por mim) é a fala cuspida duma só vez em várias ocasiões de um espetáculo de teatro. Outra coisa que acrescento é que, quando houver erros de fala, erros reais, de fala do texto, que isso possa ser manejado de maneira que nós, da plateia, percebamos bem pouco, coisa frequente entre músicos. O improviso é também o do erro, do que fazer com ele. Se é que há uma coisa chamada erro.

Finalmente, para falar da importância da peça, basta remontar ao enredo sem spoiler que dei no começo. O fato de falarmos de um CEO que pouco se importa com as mortes causadas e com os problemas de bioma que uma barragem e sua ruptura ocasionam, o fato de mencionarmos capitalismo, exploração da força de trabalho, de populações inteiras maltratadas, de responsabilização, o fato de tudo isso ser debatido, tematizado, explicitado, já nos acena para a importância da peça e do acerto de seu contexto, temporal e geográfico. Estivemos às vésperas de escolher o rumo do Brasil, estivemos no entreato. Ora bolas, Realpolitik fala disso, e o esforço, a luta, o embate visam a muito além de momentos eleitorais. O fascismo está em vias de capturar o Brasil como tem capturado a Itália. O que todas e todos nós, dentro de nossos interesses, capacidades, talentos e oportunidades, temos a fazer para impedir esse avanço? Realpolitik faz sua parte. Daniela Pereira de Carvalho, Oscar Calixto, Pedro Osório, e Marcello Gonçalves têm feito, no Rio de Janeiro, sua parte. E a têm feito lindamente, diga-se de passagem. E nós?

 

Vivian Pizzinga é escritora e psicanalista. Lançou “Ruído nos Dentes” (Urutau, 2022, poemas), “A primavera entra pelos pés” e “Dias roucos e vontades absurdas” (Oito e meio, 2015, 2013, contos), além do romance epistolar “Extravios” (Oito e meio, 2018) em co-autoria com Igor Dias. Tem doutorado em Saúde Coletiva, gosta de gatos e prefere o outono. 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *