Fragmentos do indizível
Por Vivian Pizzinga
Há uma carta lacrada por anos. Podemos, da plateia, desconfiar de que ela tem certa função de despedida. Certamente, traz um mistério, indica um amor e talvez carregue respostas a perguntas difíceis de enunciar. O destinatário é um homem que não teve oportunidade de aprender a ler. Que é capaz de, por muito tempo, guardá-la como um dos documentos mais preciosos e imantados de sua vida, sem saber o que diz. Raimundo, nascido no sertão nordestino e trabalhando na roça desde muito novo, é o homem que recebe a carta, mas precisa aprender a ler para desvendá-la e, para tal, precisa antes vencer a vergonha de se colocar numa sala de aula como alguém que não conhece as letras. Há outros desafios que o protagonista dessa emocionante narrativa terá de enfrentar: ele precisará fugir de casa e de uma história de violência familiar para sobreviver física e emocionalmente, e terá de se colocar em outras cenas e cenários para viver e encontrar-se, para acudir a si mesmo de si mesmo e dos fantasmas que o acompanham e, então, quem sabe, ter coragem de abrir a carta, tão íntima e tão enigmática, conservada por décadas fechada. O remetente dessa carta é Cícero.
Podemos eleger a carta de que falamos como um dos fios condutores da belíssima (e também brutal) história de A palavra que resta, peça adaptada e dirigida por Daniel Herz e que nos oferece uma versão dramatúrgica do premiado livro homônimo do escritor cearense Stênio Gardel, cuja obra foi laureada com o National Book Awards na categoria literatura traduzida, sendo o autor o primeiro brasileiro a receber o prêmio estadunidense. Quando tive a oportunidade de assistir à peça, quando esteve em cartaz no Rio de Janeiro no mês de outubro, eu não havia lido o livro, mas adivinho agora que não há surpresa em saber que angariou um prêmio literário dessa monta, dado que a qualidade poética do texto do espetáculo adaptado é um dos grandes elementos da montagem, que faz jus ao título, dando destaque ao lugar da palavra. O romance de Gardel foi ainda um dos dez finalistas do 64º Prêmio Jabuti, em 2022, na categoria romance literário.
Por outro lado, a peça, cuja realização é da Cia Atores de Laura (comemorando 32 anos de existência, aliás), traz uma dinâmica cênica muito própria e instigante, em que os atores e as atrizes circulam e se dividem pelos mesmos personagens, usando uma vestimenta base, no figurino assinado por Wanderley Gomes. Essa dinâmica fractal repercutiu em mim de modo a ampliar a dimensão dos personagens (em especial, Raimundo), evocando também a noção de que somos mesmo uma multiplicidade, de que, em cada ação e cada gesto nossos, há muitos e muitas dentro de nós, quiçá bem coreografados, mas nem sempre bem adaptados à realidade que nos cerca e que pode exigir-nos umas quantas coisas que, com alguma frequência, não poderemos satisfazer, e uns tantos papéis que tampouco lograremos êxito em preencher. Em cada atitude que expressamos há diversos flancos viáveis e inviabilizados, alguns escancarados, embora nem sempre iluminados e visíveis a olho nu e pé descalço. É dessa forma que, no palco, Ana Paula Secco, Charles Fricks, Leandro Castilho, Paulo Hamilton, Valéria Barcellos e Verônica Reis assumem as vozes e as dores de Raimundo, Cícero e alguns dos outros personagens, em um drama familiar e pessoal de silenciamento, renúncias e, sim, alguma redenção.
É na juventude que Raimundo, nosso personagem, descobre seu amor por Cícero, e será em meio à rotina de trabalho na roça que, juntos, descobrirão a aventura do sexo e as consequências de não se furtarem aos seus desejos. Afinal, já nos sinalizavam Freud e os teóricos e as teóricas da psicanálise que se furtar ao desejo exige uma solução de compromisso dolorosa, traduzida em sintomas corporais e psíquicos, bem como em vida decepada e literalmente paralisada. O interdito da homossexualidade, porém, é um elemento que atravessa, de modo certeiro, o drama familiar de Raimundo, e os segredos e os não-ditos transgeracionais darão lugar a uma dura condenação do protagonista, após a descoberta desse enlace amoroso que o olhar do outro não admite e não suporta. Assim, acompanharemos a jornada de Raimundo, que tem de fugir para longe de sua cidade e das pessoas que ama. Mas somos mesmo muitos e muitas por trás de nossos posicionamentos superficialmente coerentes e, desse modo, as contradições de Raimundo também irão aparecer ao longo de sua vida na cidade, especialmente quando conhece a mulher trans Susany, vivida pela atriz convidada Valéria Barcellos, e também por Verônica Reis e Ana Paula Secco. Susany é um personagem imerso em vivências de violência e de quem, aos poucos, nosso protagonista se tornará amigo.
É preciso dizer que o espetáculo A palavra que resta cumpriu belíssima temporada carioca e merece outras mais, aqui e em outras cidades, porque nós merecemos mais e porque precisamos continuar falando e refletindo, poética e dramaturgicamente, sobre a temática encenada no palco: se a peça nos apresenta poesia e coragem, se menciona vergonha e sua contraparte, a exposição de si, é porque não hesita em pensar linguagens e imagens que trabalham, com primor, preconceitos, conservadorismo, homofobia, rejeição. É porque traz à tona possíveis caminhos de resistência e insistência. As atrizes e os atores da Cia Atores de Laura, claramente mergulhados na experiência literária que se origina em Stênio Gardel, conseguem sustentar o texto nos emocionando e também, em alguns momentos, nos fazendo rir, com as tiradas e reações cheias de ingenuidade e aparente espontaneidade dos personagens nas cenas que evocam o percurso trágico de uma vida e de uma família. E o espetáculo, por fim, tem o dom de despertar a curiosidade para a leitura do livro. Entretanto, infelizmente, ainda não é demais repetir que a violência física, psicológica e simbólica à população lgbtqia+, assim como a mulheres, pretos e pobres (lista que não esgota a lista), é um clichê em nosso país, e a abordagem dramatúrgica do assunto, ainda que não tenha como finalidade a pedagogia moral, mas sim a expressão artística, acaba por se fazer necessária, neste nosso país que tem tomado um gosto enorme por retrocessos. Espero ainda o momento em que não será preciso sublinhar, em nenhum texto sobre teatro, literatura ou cinema, a atualidade do tema, dadas as circunstâncias culturais em que vivemos. Que possamos apenas mencionar o deleite estético que uma excelente encenação, a partir de um texto literário de ampla e reconhecida qualidade, desperta em nós. Que possamos nos concentrar naquilo que um espetáculo teatral nos faz refletir sobre tantos outros aspectos pessoais e existenciais de nossas vidas. Espero ainda o momento em que escrever sobre A palavra que resta e outros espetáculos por vir possa escolher falar de violência e homofobia apontando-os como um evento histórico triste finalmente superado, passagem desbotada da história, como nos canta a música. Mas ainda não chegou o momento. Enquanto isso, podemos ocupar os teatros para elaborar, psíquica e coletivamente, por vias artísticas, nossos traumas individuais e coletivos e, por que não?, conferir beleza poética às histórias que nos constituem.
Vivian Pizzinga é psicóloga e escreve. Lançou, entre outros, “Ruído nos dentes” (Urutau, 2022, poemas) e “A primavera entra pelos pés” (Oito e meio, 2015, contos). Participou de coletâneas e revistas literárias, como da Revista Lavoura 7 (2022,impressa), Escriptonita (Patuá, 2016) e Cada um por si e Deus contra todos (Tinta negra, 2016, contos). Fez doutorado em Saúde Coletiva, no Instituto de Medicina Social (Uerj), é carioca e prefere o outono.