Olhares

O fluxo natural de uma leveza

Por Fabrício Brandão

 

Ilustração: Joana Velozo

 

Certamente, muitas existências estão abrigadas em nosso íntimo. Há aquelas que se expandem rumo ao contato com o mundo exterior; outras, como num movimento de retração, voltam-se para o confinamento interior dos mistérios pessoais que carregamos conosco. Temos o poder de decidir qual das nossas esferas de vivência deve vir à tona sob o olhar alheio. No território da alteridade, carecemos da troca que advém do Outro, este alguém que, mesmo não estando próximo, contribui para que tudo o que expomos seja compreendido também como sendo o resultado dos encontros humanos.

Talvez a melhor experiência que possamos adquirir com a Arte seja aquela que aponta para o entendimento sobre quem somos. Por óbvio, esse não é um mecanismo tão simples de se apreender e quiçá exija até mesmo certo engajamento filosófico para sua compreensão. Num misto de contemplação e lucidez, o universo artístico é capaz de desacomodar estruturas e promover também observações mais críticas sobre a realidade. O artista, reconhecendo-se parte integrante do mundo que registra, passa a ser alguém envolvido com as tramas do seu tempo.

Pelos delicados traços da arte de Joana Velozo, o ato de existir pode ser tido como um lampejo poético diante do mundo que nos apresenta incessantemente suas complexidades. Por entre as frestas do cotidiano, surgem vívidas as imagens construídas pela artista, processo criativo a engendrar facetas humanas.

Brasileira radicada em Barcelona, Joana nos apresenta em seu trabalho todo um painel de cores e formas devotadas ao sublime exercício das constatações. E quais seriam elas? Todas aquelas que simbolizam gestos pertencentes a certas andanças humanas. Nesse contexto, impera vigorosa a representação do universo feminino, especialmente alicerçado em contornos que expressam o lado orgânico e substancial do ser mulher. Tais incursões nos remetem a uma conexão que estabelece laços telúricos com a condição feminina disposta numa permanente transformação. Ser mulher aqui dialoga com a ideia de que emergem subjetividades no seio cotidiano das libertações individuais.

 

Ilustração: Joana Velozo

 

Nas ilustrações de Joana Velozo, vislumbramos também interfaces da natureza. Da confluência entre fauna e flora, emanam representações de vidas que correm paralelas ou até mesmo harmonizadas com a interferência dos homens. Assim, animais e vegetais contribuem para a construção de todo um imaginário que, divisando as fronteiras do real e do fantástico, proporcionam uma viagem amplamente sensorial a partir das imagens da artista. Nesse trajeto de percepções, homens e natureza surgem intimamente conectados.

A utilização das cores é outro ponto de destaque nos trabalhos de Joana. Os variados tons e intensidades ali dispostos revelam camadas distintas de apreensão, todos eles a tratar a passagem humana pela Terra como algo essencialmente marcado pela leveza. As cores sugerem um contrabalançar de sentimentos que marcam a expressão dos personagens e ambientes simbolizados. Mesmo diante de certas intempéries, os seres que protagonizam as ilustrações da artista têm suas tensões atenuadas pelos contrastes cromáticos escolhidos. Desse modo, tons de diferentes escalas não se prestam a um mero jogo de oposições; pelo contrário, advogam por papéis específicos dentro da narrativa visual proposta.

Mesmo sabendo que o mundo em que vivemos não nos permite mergulhar em estados de encantamento permanente, talvez a mensagem mais significativa do trabalho de alguém como Joana Velozo se apoie na ideia de que o lado sereno das coisas precisa emergir com mais frequência diante de nossas práticas usuais. É possível suportar a realidade com requintes necessários de quietude e reflexão.

 

Ilustração: Joana Velozo

 

* As ilustrações de Joana Velozo são parte integrante da galeria e dos textos da 129ª Leva

 

Fabrício Brandão confessa que, definitivamente, não consegue sobreviver sem arte. Por isso, atira-se a livros, discos e filmes com o sabor perene da primeira vez. Por isso, edita a Revista Diversos Afins, é baterista amador e, atualmente, mestrando em Letras pela UESC, aliando Literatura, Comunicação e Cultura.

 

 

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