Olhares

Dos legados do corpo

Por Fabrício Brandão

 

Foto: Fátima Soll

 

O que pode o corpo enquanto narrativa? Trazer notícias de um mundo embebido em caos e dúvidas? Falaria ele de rompimento de amarras de toda ordem? Anunciaria a vida em toda a sua potencialidade expressiva?

As indagações acima jamais esgotariam as possibilidades plausíveis de reflexão. São, na verdade, apenas um pequeno recorte do universo que remonta ao tema. Tudo depende de como direcionamos nosso olhar para a disposição das coisas. E também não é de hoje a ideia de se pensar o mundo e suas intricadas questões a partir de uma cartografia do corpo humano.

Tradicionalmente, temos pensado o corpo como um símbolo vivo de afetos, desejos e paixões. Também o tomamos como porta-voz de anseios de toda ordem, seja pelas marcas que traz, seja pela inscrição do tempo que o modela nas suas mais aparentes formas. Mas há a perspectiva do interdito, da proibição e da tentativa de silenciamento que atravessa as eras.

Um corpo que transgride regras controladoras, desacomoda tabus e, desse modo, envia seu recado político ao externo costuma, por exemplo, causar incômodos. E se este mesmo corpo for feminino, o impacto parece ser maior ainda, dada toda a carga de negativas conferidas a ele nos desvãos da nossa humana história por sobre o planeta.

 

Foto: Fátima Soll

 

Mas por que dizer isso tudo? Talvez como modo de não esquecermos que, para além de um receptáculo físico da matéria que nos constitui, portar um corpo é abrigar uma identidade própria a nos orientar para todas as direções. E tal condução abraça a nossa subjetividade como protagonista daquilo que pensamos, sentimos e aplicamos no campo concreto das realizações e interações com o mundo que, por vezes, tenta nos trucidar com seus imperativos.

Diante de toda essa constatação, faz bem termos em conta que habita entre nós a obra de Fátima Soll, artista que empresta olhares especiais aos percursos do corpo. Sua arte vai muito além da representação de mundos que transitam entre nossos domínios mais aparentes, posto que é chama sensorial que nos provoca ao lançar reflexões acerca da condição humana.

Munida pelo ferramental da fotografia híbrida, mescla do impresso com outras técnicas, Fátima adentra poeticamente as searas da imagem. Nesse trajeto, o mix de possibilidades criativas lhe permite ressignificar contextos, ofertando a quem se depara com sua arte outras experiências em torno da vivência do real.  Mas em tal caminho também se revela o flerte com a porção sublime da existência, pois suas fotografias são de tal ordem que ultrapassam as fronteiras da fisicalidade, voltadas que estão para um mergulho interior.

E não é em vão que a temática do corpo está tão impregnada nestas linhas que agora surgem por aqui. O próprio trabalho de Fátima vislumbra o assunto com marcas de autenticidade, posto que cria e recria, desloca-se da origem ao ponto no qual a vida acontece e se manifesta também de forma experimental. Na via do autorretrato, a própria artista revela-se amalgamada a sua criação, pondo seu corpo enquanto instrumento de libertação da alma e dos sentidos dentro de uma via que harmoniza autodescoberta e percepções do mundo.

 

Foto: Fátima Soll

 

Natural de Florianópolis, Fátima é formada em Cinema pela Universidade Federal de Santa Catarina, possuindo também qualificação profissional em fotografia pela Escola Câmera Criativa. Confessa que se dedica ao ofício com as imagens como um meio de tornar visíveis emoções e reflexões, tudo isso movido por um espírito que posiciona a arte enquanto instrumento para se alcançar a liberdade.

Mas eis que a fotografia de Fátima Soll não é tributária de um gesto simples de libertação. Sua capacidade de explorar o nu, esse elemento ainda perturbador, aponta para um gesto político num sentido especial do termo. Implica em marcar um lugar no mundo a partir de perspectivas corporais que comunicam sensações complexas, mistérios, efusões, atos inconfessáveis, silêncios, contemplações, tomadas de posição e também a efervescência marcante e insone da paixão pela vida.

Pensar a arte de Fátima Soll é imergir em águas que acusam não somente o gesto espantado de existir, mas também permite a fruição de certas delicadezas existenciais. É também perceber a coexistência entre as porções interna e externa da natureza humana, seus matizes que nunca apontam para lugares fixos e estáveis. Nesse caminhar, os sentimentos parecem camadas sobrepostas umas às outras, engrenagens mobilizadoras daquilo que vai por dentro, aurora a reafirmar o indizível em nós.

 

Foto: Fátima Soll

 

* As fotografias de Fátima Soll são parte integrante da galeria e dos textos da 146ª Leva

 

Fabrício Brandão é frequentador do mundo da Lua, sonhador e aprendiz de gente. Se disfarça no planeta como editor da Diversos Afins, poeta, baterista amador, mestre e, atualmente, doutorando em Letras, pesquisando eus que trafegam pelo mundo virtual.

 

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2 Comentários

  1. Que maravilhoso, Fabrício. Adorei sua leitura! A arte liberta, não é?

  2. Adorei! O poeta dignificou com honra as imagens belíssimas da Fatima Soll

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