Pequena Sabatina ao Artista

Por Sérgio Tavares

 

Bruno Ribeiro não é um autor dado a temas fáceis e convencionais. “Febre de enxofre”, sua primeira incursão no romance, é protagonizado por Yuri Quirino, um poeta desiludido com a literatura e com o amor, que recebe uma proposta bizarra de escrever a biografia de um tal Manuel di Paula, um sujeito soturno, que o arrasta para uma jornada de assombros pelas vielas de Buenos Aires. O enredo é livremente inspirado no clássico “Fausto”, do alemão Wolfgang von Goethe, sobre um homem que negocia a alma com o diabo em troca de um tipo de eternidade, mas também pode ser lido como uma investigação sobre vampirismo. Em suma, um terror vestido por um escopo mais complexo.

“Glitter”, que acaba de ser lançado, também margeia a fronteira da literatura de gênero. É um romance pop, de certo modo; ou melhor, uma antiutopia pop. Vinte modelos com sérios desvios são contratadas pelo estilista e escritor Guilherme de Boaventura para atuarem no experimento La Poésie Vivant. Uma espécie de reality show, no qual as participantes ficarão confinadas dentro de um shopping center durante um ano, encerrando o exílio com um desfile em que irão se suicidar diante de um público selecionado. É um livro crítico, provocativo, que expõe as dissimulações e os delírios que (des)governam a sociedade contemporânea.

Com o mesmo tom afiado e repleto de personalidade, o autor mineiro radicado na Paraíba responde a esta entrevista exclusiva para a Diversos Afins. Ribeiro mira seu olhar sobre sua produção e o mercado do livro, observa a geração de novos escritores em que está inserido, fala sobre prêmios literários, oficinas de criação, editoras independentes e o tempo em que morou na Argentina, por conta de um período acadêmico. Uma posição que não se exime de tomar partido, sem artificialismo ou disfarce, e até certo ponto provocativa. “Assim como uma modelo com a bunda grande demais pode perder um trabalho, um escritor que passou do ponto ou não respeita as regras do bom mocismo literário pode perder sua chance de publicar numa editora “importante” ou até de participar de um evento badalado”, dispara.

 

Bruno Ribeiro / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Seu primeiro romance, “Febre de enxofre”, pode ser lido como uma revisão portenha do “Fausto”, de Goethe, no qual o diabo figura entre os personagens centrais. “Glitter”, que acaba de sair, trata de um experimento no qual vinte modelos problemáticas são confinadas num shopping, focalizando em seus desmoronamentos psicológicos que resultam em atos de violência repletos de grafismo e baldes de sangue. De maneira involuntária ou não, seus livros têm a intenção de se estabelecerem como literatura de gênero?

BRUNO RIBEIRO – A pergunta é muito pertinente, porque adoro me debruçar nos procedimentos da literatura de gênero e creio que eles atuem como um espelho distorcido no meu trabalho. Faço uma literatura de gênero que nega seus próprios mecanismos, uma espécie de anti-gênero. “Febre de Enxofre” pode ser lido como um romance de terror, mas tenho consciência de que transgrido algumas regras deste tipo de livro, assim como injeto diversas referências pouco comuns ao estilo. Já “Glitter”, tem uma chave policial em certos momentos, mas também nunca se entrega totalmente ao que podemos chamar de romance policial. E isso também ocorre em outros textos, como nos contos de “Arranhando Paredes” e nos meus inéditos. Eu abraço o gênero em toda sua complexidade no cinema, pois os projetos em que trabalhei como roteirista foram todos de policial, thriller ou terror. Na literatura, utilizo-os como uma sombra que a qualquer momento pode sumir e aparecer no texto, por isso talvez seja difícil me estabelecer como autor de gênero, pois estou sempre por perto, entretanto me esquivando da responsabilidade de ser, de fato, um autor de literatura de gênero. Neste sentido me inspiro na forma como a literatura latino-americana, especificamente a argentina, lida com essa questão; cito aqui Ricardo Piglia e Borges, que conseguiam brincar e subverter com os procedimentos do policial como ninguém.

 

DA – O escritor norte-americano Chuck Palahniuk, autor de “Clube da luta”, trafega entre vários planos temáticos – o terror, a distopia, o consumismo, a pornografia, a fábula – para acertar sempre num alvo: a sociedade de seu país. Com uma forte carga crítica, que causa do choque ao riso nervoso, qual é o verdadeiro alvo de “Glitter”?

BRUNO RIBEIRO – A escritora francesa Christine Angot disse que “escrever é sempre violar uma intimidade”. Acredito nessa frase e quando não estou violando a minha, busco violar a de outros ou até a de certas estruturas e campos, como foi o caso de “Glitter”. A indústria da moda é duramente criticada e “violada” no meu romance, mas ela é uma cortina de fumaça. O principal alvo de “Glitter” – pois existem vários – e no qual busco as entranhas é a religião e o capitalismo. Giorgio Agamben disse que “o capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua”. Este conceito serviu bastante de inspiração para a construção do livro: uma religião sem fome, pura voragem, glamour e sangue. Pensar que o shopping é um sinônimo de igreja do capital, aonde a sociedade vai diariamente pagar seus dízimos e se ajoelhar perante as infindáveis lojas de departamento é assustador. Outra coisa terrível é pensar que tudo pode e é devorado pelo capitalismo, coisa que acontece numa chave distópica em “Glitter”. Pense que alucinado é ver diversas obras de arte, desde o mictório de Duchamp até os grafites, estampados em museus e sendo vendidos a preços absurdos para ricões que desejam lavar dinheiro e afagar seus egos. Impossível? Com o capitalismo isso acontece: tudo é absorvido, até aquilo que nasceu para bater de frente com ele. Em “Glitter”, a própria morte se torna tendência; a tortura de modelos, no futuro remoto que criei, vira purpurina, publicidade, padronização coletiva, novas formas de se vender roupa e encantar os olhos alheios. Por isso que a moda e todos seus melindres, profundezas e superficialidades, belezas e feiuras, sublime e profano, clássico e vanguarda, – toda a dicotomia que a envolve – representa a sociedade e a forma como o capitalismo a atinge: um treco que se molda a qualquer coisa para lucrar, da sarjeta ao luxo, da vida à morte.

 

DA – Você consegue traçar um paralelo entre a experiência de confinamento das modelos e o processo de escrita? Ou, porventura, com o mercado literário?

BRUNO RIBEIRO – Sem dúvida. Por isso o livro brinca ao colocar as modelos para escreverem poemas e especificamente isso fica mais claro no trecho em que elas estão numa livraria do shopping buscando inspiração. Todos os meus textos ficcionais lidam com o processo criativo. Tento fugir ao máximo dos clichês ao falar deste tema, que é extremamente batido, mas tanto o poeta seduzido por um demônio em “Febre de Enxofre” como as vinte modelos seduzidas pelo estilista ermitão em “Glitter” estão sendo puxadas para um inferno vasto e que pode ser lido como o demônio da criação e as diversas dificuldades que nos rodeiam enquanto artistas; no caso do meu poeta: as dificuldades para sobreviver e escrever uma biografia; no caso das minhas modelos: as dificuldades para sobreviverem e escreverem um poema. Esses personagens precisam lidar com seus problemas e principalmente em manter a sanidade na hora da criação. Ambos romances, “Febre de Enxofre” e “Glitter”, mantêm um diálogo forte com a literatura do século XIX; os românticos, os duplos, a decadência, a perda da beleza e da pureza, frustrações, o lirismo carregado na linguagem, a dor do poeta ou do criador em lidar com sua obra, vida, entorno; minha mente ao criar tramas e personagens vai de Mary Shelley e sua criatura arrebatadoramente poética e monstruosa, vindoura da mente do doutor Victor Frankenstein, à Charlotte Brontë, Goethe, Baudelaire, Rimbaud, Stevenson, Edith Wharton, Oscar Wilde, Poe, Bram Stoker, Huysmans, e por aí vai. Todos esses autores, à sua maneira e de diversas formas, lidaram com o mesmo que lido em meu projeto literário. Quanto ao mercado é possível, sim, fazer comparações entre o literário e o fashionista. O jovem escritor sofre tanto quanto o jovem modelo, a diferença é que o meio literário esconde sua escrotidão por meio da intelectualidade e das etiquetas, o mundo fashion não esconde tanto, o abuso é mais explícito e visceral. No livro, pergunto se “a morte não é a melhor metáfora da eternidade?”, e a frase se encaixa em moda e literatura. Autor morto não vende mais livros? Modelo ou estilista morto não vende mais roupa? Quando Alexander McQueen se matou, suas roupas e looks esgotaram ao redor do mundo. E isso tudo é reflexo da alucinação midiática que vivemos, o que me faz pensar que toda distopia, por mais bizarra que seja, acaba se tornando palpável. Basta ver o que vivemos ultimamente no Brasil: nada é tão absurdo que não possa se tornar realidade.

 

DA – Há poucos meses, o meio literário foi sacudido pela aparição de um prêmio internacional para livros inéditos, cujo vencedor levaria a bagatela de 200 mil euros. Passado o furor inicial, descobriu-se que era uma grande fraude, criada para sustentar uma performance artística realizada durante a última Festa Literária de Paraty – Flip. Ao investigar com agudeza os interstícios do universo da moda, você também intenciona expor um mecanismo de artificialidades que movimenta o mercado literário?

BRUNO RIBEIRO – A literatura ainda é muito conservadora e isso me inquieta bastante, pois como disse César Aira, ela é a “rainha das artes”, tudo cabe dentro dela, e mesmo assim nossa amada ainda é a mais tímida nas transgressões de forma e conteúdo. Sobre o prêmio internacional que você fala, o Babel Book Award, eu o achei bem instigante. Tenho algumas críticas? Obviamente, mas pelo menos estremeceu um meio que é movido por faíscas fracas demais, sabe? É tudo muito morno no meio literário. E quando algo pega “fogo”, sempre é de forma burlesca, tosca, sem noção, realizada por meninos birrentos e ególatras. Por isso sou fã do Kenneth Goldsmith, poeta americano que criou a Escrita Não-Criativa e causa arrepio nos arcaicos da literatura. E no Brasil, claro, sou fã do Ricardo Lísias, que escreveu a orelha de “Glitter” e é um dos escritores contemporâneos brasileiros que mais admiro, exatamente porque seu projeto literário sai da zona de conforto e não fica só na repetição. O artificial em “Glitter” pode ser comparado com o mercado literário no sentido da plasticidade deste meio: as falsidades, risadinhas, panelinhas… E assim como uma modelo com a bunda grande demais pode perder um trabalho, um escritor que passou do ponto ou não respeita as regras do bom mocismo literário pode perder sua chance de publicar numa editora “importante” ou até de participar de um evento badalado.

 

DA – Um dos aspectos curiosos de seu livro é que muitas de suas modelos não têm nomes comuns, sendo denominadas por atos de linguagem que misturam características físicas, adjetivos, estados emocionais e designações parentais, a exemplo de Netinha Abusada. Lembrou-me, de imediato, o romance “O Todo-ouvidos”, do búlgaro Elias Canetti, que é, de fato, um estudo de caracteres, previsto como uma forma de protesto contra a importância que o personagem assumiu, ao longo do tempo na literatura, tornando-se maior que a própria narrativa em que está inserido. No caso de “Glitter”, qual foi sua motivação ao criar esses nomes bizarros?

BRUNO RIBEIRO – Gosto muito de fábulas e a ideia partiu muito dessa referência. Fora isso, eu queria criar arquétipos da moda, por isso pensei em nomes que pudessem representar não só uma modelo, mas um nicho. A “punk” que poderia ser colocada no nicho de uma Kate Moss da vida, a “netinha” mimada, a noiva que foge do casamento e tenta a sorte no mundo da moda, a princesinha do Projac, representando as modelos que trabalham na TV, a negra que é taxada de louca, a miss universo, a polêmica, a maconheira, a suicida, a fofinha, a que morou fora, a da cidade pequena, e enfim, cada nome parte deste pressuposto de causar um estranhamento e tentar resumir um perfil estereotipado de top model.

 

DA – Ao longo do livro, além de sobreviver ao confinamento, as modelos têm de protagonizar um grande desfile final e escrever um poema. Obviamente que está aí inserido uma ironia crítica, mas a quem ela se dirige? Ao mercado que despreza a poesia? Às editoras pequenas que revelam poetas a cada semana? Ao gênero em si?

BRUNO RIBEIRO – A frase que conduz meus trabalhos literários vem do Charles Baudelaire: “seja poeta, mesmo na prosa”. No meu mestrado de Escrita Criativa, meu tutor foi um poeta, o Guillermo Saavedra, e quando ele terminou de ler “Febre de Enxofre”, disse enfaticamente que eu era um poeta escondido no corpo de romancista. Eu amo poesia e ela me influencia muito. Matar poetas e torturá-los em meus livros é uma forma de botar para fora minha frustração por não ser um poeta. Quanto à crítica, ela vem do mesmo lugar que partiu a do “Febre de Enxofre”: o excesso de poetas e a falsa glamourização em cima deles, o mercado que não sabe onde colocá-los, os bons poetas que morrem sem ser publicados, a estranheza deste gênero que parece não se encaixar em nenhum lugar. A poesia é a liberdade total, sem ressalvas, é o mais perto que temos dos procedimentos das vanguardas na literatura, e por isso sempre a levo comigo, pois a poesia é o não-lugar, e essa posição de incômodo em que ela reside, de não fazer parte nem do mercado nem daquilo que está fora dele, me interessa muito enquanto escritor. A poesia é repleta de técnicas e regras e, paradoxalmente, também é indomável e libertária, e é essa pegada dicotômica que busco na minha literatura.

 

DA – “Glitter” foi finalista do Prêmio Kindle de Literatura. Anteriormente, você tinha sido revelado entre os vencedores do Prêmio Brasil em Prosa, promovido numa parceria entre o jornal O Globo e a Amazon. O que significa isso, afinal? Qual o resultado prático para a carreira de um jovem autor ganhar um prêmio? Olhando para trás, você percebe que lhe ajudou de alguma forma ou é, no fim das contas, apenas uma informação boa para constar na biografia?

BRUNO RIBEIRO – Ajuda a ganhar alguns leitores e espaços, mas acredito que pesa mais na biografia do que numa alavanca rumo ao sucesso. Assim, consegui entrada em alguns eventos, como a Flinksampa e FLIP, mas não é algo que tento levar tanto em consideração quando estou escrevendo. É bom? Sim. É essencial para mim? Não. A escritura sempre vence, pois já nasceu derrotada e não tem mais nada a perder: seja com troféu ou com sarjeta.

 

DA – Falando em biografia, apesar do holofote dos prêmios, seus dois livros (e, aqui, falo sem qualquer ideia de desmerecimento) foram publicados por editoras com circulação mais restrita. Você chegou a tentar um contato com os grandes grupos editorias; utilizar da repercussão dos prêmios para chamar atenção para seus livros? Ou foi mesmo uma opção, pois enxerga a literatura brasileira sendo produzida dentro de uma nova configuração? Qual é a sua relação com as editoras?

BRUNO RIBEIRO – Vivemos no tempo do autor, onde somos zagueiro, meio de campo, atacante e goleiro ao mesmo tempo. Neste novo tempo, a editora surge mais como uma parceira a meu ver do que alguém extremamente decisivo na minha vida literária. Atualmente ando tentando uma aproximação com editoras maiores, mas porque o livro que pretendo apresentar para elas seria interessante que tivesse uma maior distribuição. Cada livro tem sua demanda e é assim que penso quando vou tentar publicá-los. Sobre a minha relação com os editores e editoras, afirmo que sempre foi ótima; sou amigo do pessoal da Penalux, Pátua, Moinhos, Escaleiras, Cousa, Bartlebee, Mondrongo, e acho muito gratificante que assim seja. Juntos somos mais.

 

DA – Você também tem publicado o livro de contos “Arranhando paredes”, que foi traduzido para o espanhol e lançado pelo selo argentino Outsider. Essa aproximação vem de um período em que você estudou literatura em Buenos Aires. Dessa experiência, você consegue opinar se os caminhos para um autor iniciante são menos pedregosos na Argentina que no Brasil? O que tem de diferente na maneira de se compreender a nova literatura entre esses dois países?

BRUNO RIBEIRO – É pedregoso também. Escritor se fode em todo canto. As diferenças começam com a forma que o mercado lida com a literatura, vejo que lá a coisa funciona de uma maneira mais justa, principalmente a aproximação das editoras com livrarias, que me parece menos predatória. Outra coisa que muda é o grande número de editoras independentes de qualidade, fenômeno que estamos começando a ver brotar no Brasil. Outro ponto é que na Argentina há mais leitores e formas de se destacar no meio literário. No Brasil ainda estamos muito ligados a isso de ganhar prêmios, por exemplo, como forma de chancelar sua obra. Não vi isso por lá. É importante faturar um prêmiozinho? É, mas pelo tempo em que vivi lá, notei que não é isso que fará você alcançar um status mais interessante no meio literário ou sequer receber alguns aplausos. Existem outros processos e maneiras para ser lido e conseguir se destacar, e essa pluralidade de caminhos é uma das coisas mais interessantes na vida literária argentina. Mas tirando esses pontos, muitos autores argentinos que conheci reclamavam tanto quanto nós aqui do Brasil. A dor é a mesma, mas talvez a deles seja mais doce. Culpa do tango e de Borges.

 

Bruno Ribeiro / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Assim como no cinema, a literatura argentina é melhor que a brasileira?

BRUNO RIBEIRO – É um pouco complexo dizer que uma literatura é melhor do que a outra. O Brasil vive um momento de eclosão, anda se publicando muito e tem gente boa pra caramba à solta, assim como o mercado argentino também está pipocando. Tem coisas boas e ruins em ambos cenários. O cinema argentino mesmo chegou aonde chegou por causa de anos e mais anos de investimentos, coisa que só começamos a ter recentemente, e os louros disso já estão surgindo: muitos filmes brasileiros começaram a aparecer nos principais festivais de cinema do mundo e estão se multiplicando por aí: não só em quantidade, mas em qualidade. Com a literatura a coisa não muda muito de figura, o mercado argentino – apesar dos pesares – investiu mais no decorrer do tempo, distribuiu melhor também, tanto que isso de autor argentino sair vendendo livro pelo inbox de Facebook é algo raríssimo; em Buenos Aires mesmo, onde vivi, estudei e convivi com escritores por quatro anos, acho que dá pra contar no dedo de uma mão as vezes que vi isso acontecer; geralmente o autor lança seu livro e o divulga nas redes, mas falando para o pessoal ir comprar nas livrarias. Ou seja, a distribuição e o número de tiragem são melhores do que no Brasil, onde colocar um livro pra vender na livraria é praticamente pedir para falir. Fora ver livros de editoras pequenas sendo vendidos em livrarias grandes, é preciso ressaltar também a tremenda força das livrarias pequenas e independentes; lá tem muitas e elas conseguem sobreviver e aquecer o mercado. Fora aquilo que todos já sabem: na Argentina tem mais leitores. Então, a questão de melhor ou pior acaba se tornando pequena quando comparamos com esses termos que são tão importantes quando tratamos de distribuição e produção de literatura e arte.

 

DA – Ainda no universo do conto, além do seu livro, você é muito ativo na participação e na organização de antologias de narrativas breves. Percebendo a dificuldade do mercado literário de lançar novos autores, você considera que participar de antologias, de coletivos literários, é uma forma eficaz de apresentar os primeiros textos? É possível ter uma carreira independente e ter relevância dentro do meio literário?

BRUNO RIBEIRO – Eu organizo antologias por acreditar de verdade no projeto e principalmente nos autores que convido. “Cem anos de amor, loucura & morte”, “Língua Rara”, “Estamos aqui”, “Um Jardim de Promessas”, todas foram antologias que organizei mais pela paixão do que pelo retorno. Publicar em antologias é uma boa maneira de começar a publicar, de apresentar um primeiro texto, mas convenhamos que pouquíssimas pessoas leem antologias. Pra vender é extremamente difícil e quando você vende raramente alguém lê. Mas estamos aí, na luta e organizando antologias, fazer o quê? O meio literário ainda tem suas resistências com os escritores independentes. Muitos insistem em dizer que não, mas é visível essa resistência e preconceito. Seja como for, sou mais integrado do que apocalíptico, pois vejo que a abertura para os independentes, seja em prêmio, festas, publicações, espaços ou eventos, está aumentando e isso é ótimo. Pode melhorar? Pode, mas pelo menos o barco está andando e aos poucos vamos quebrando a roda.

 

DA – Você também é muito ativo nas novas plataformas de publicação e nas redes sociais. Para um autor que não conta com o aparato de divulgação que envolve os livros lançados pelos grandes grupos editoriais, tais ferramentas são fundamentais para apresentar, anunciar e badalar um livro e a própria carreira. No entanto, a larga exposição acabou constituindo um espaço também favorável a vaidades, rixas, cabotinices e quebra-paus. Há um limite para o bom-senso nas redes? Ou é cada um por si mesmo?

BRUNO RIBEIRO – É preciso ter bom senso na vida como um todo, não só na internet. Infelizmente, muitos autores pensam que estão em seus banheiros e saem vomitando merda pra caramba por aí. Mas essas presepadas fazem parte do processo, pois as redes sociais democratizam de forma grandiloquente seus espaços, então temos acesso a coisas incríveis e, logo em seguida, a coisas escrotas. São as dores e amores da democracia e eu prefiro isso a uma rede que censure discursos e diga o que pode ou não pode. A internet ajuda bastante na divulgação dos meus textos, sem dúvidas. Se não fossem as redes sociais, uma boa porcentagem da literatura contemporânea brasileira estaria sem meios de se divulgar. A web veio para ficar e é uma ferramenta extremamente válida e útil para romper com a diáspora existente no mundo literário.

 

DA – Já que estamos na seara da crítica, recentemente a Folha de São Paulo publicou um artigo em defesa da crítica negativa, na qual a autora do texto reclamava o direito de tratar o livro (e consequentemente o autor) “a chibatadas”. Seus livros, pelo que eu me recordo, foram bem recebidos pela crítica, sendo um deles, inclusive, selecionado por um renomado crítico como um dos melhores lançamentos do ano. Mas se fosse de outra forma: como reagiria se algum de seus romances fosse defenestrado? E como funciona sua relação com a crítica literária: acha importante, não lhe interessa ou entende como um tipo de conceito de avaliação ultrapassado?

BRUNO RIBEIRO – A crítica é essencial. O sentido de uma obra passa pela mão do leitor e os grandes livros são aqueles com uma ambiguidade potente o bastante para conseguir se reinventar durante os séculos. Vide Madame Bovary ou Dom Casmurro: um leitor acha isso, outro acha aquilo, e essa pluralidade de leituras é o que enriquece um livro. A importância do crítico passa neste ponto: é um escritor – pois vejo o crítico como um escritor – que disseca uma obra e a amplia, nunca fecha. Críticos que fecham livros dentro de conceitos restritos e predeterminados me incomodam. Ou seja, acho válido um livro ser duramente criticado, mas que isso seja explicado tecnicamente e que o crítico não isole o livro e suas possibilidades, que deixe algo em aberto, que jogue as vísceras do livro no palco, mas que não o resuma a adjetivos banais e reducionistas. Fora os críticos que fecham ao invés de abrir as obras, outra coisa que me incomoda é a agenda de muitos deles. O meu incômodo surge ao ver certos críticos descendo o pau em livros de editoras pequenas e exaltando os de editora grande e, só vez ou outra, descendo o pau em um livro das grandes. É sério que editora pequena só publica porcaria? Não tem unzinho que preste? Aparentemente é muito fácil jorrar verdades absolutas sobre um meio literário que você só conhece um pedaço. De metonímias e bocas grandes o mundo tá cheio, mas se debruçar de fato sobre um universo para assim, e só assim, dar uma opinião relevante sobre um mundo tão complexo e vasto como o literário nacional é mais difícil e poucos o fazem.  Nesses casos, o que vejo é a boa e velha torre de marfim reinando, pois impor uma agenda claramente conservadora e que só elogia um lado… Não vale é de nada para mim. Um crítico literário deve ter uma agenda ampla, sem conservadorismos e preconceitos, e caso não seja assim, acredito que deva ser honesto sobre suas intenções pelo menos, porque senão passa uma imagem errada e totalmente ultrajante a meu ver. Se o crítico tem uma responsabilidade, essa é a de ser transparente.

 

DA – Além de autor de ficção, você também ministra cursos e oficinas literárias. Muito se discute sobre a capacidade desses laboratórios de escrita de formarem um escritor em contrapartida ao que é considerado, por alguns, como uma aptidão, uma qualidade inata. Da sua experiência, o que de fato uma oficina pode oferecer para quem pretende ingressar na literatura? Um escritor, afinal, pode ser “ensinado” a escrever bem?

BRUNO RIBEIRO – Inicialmente, a experiência me inquietou. Hoje, sinto-me realizado nesta posição de professor de escrita criativa. Acompanhar e ler textos de diversos gêneros e estilos é um verdadeiro aprendizado. Aprendi a ler de tudo, pois um professor de escrita criativa precisa estar aberto para todos os tipos de literatura, afinal, só assim é possível avaliar tecnicamente uma obra que fuja do seu agrado. Não é fácil, mas aprendi. Uma oficina pode entregar técnicas, procedimentos literários e principalmente leituras. Uma indicação de livro pode mudar a vida de um aluno. Outra coisa importante é aprender a ler, esmiuçar de verdade um texto, a linguagem, trama, personagens. Ler o amigo de oficina é mais importante do que escrever, pois ao julgar o texto alheio você indiretamente está aprendendo a avaliar o seu texto também. Aprender a escrever é algo estranho e que sempre me soa pesado, apesar de achar que uma pessoa pode aprender a escrever bem, obviamente. A diretora do meu mestrado de escrita criativa, a poeta argentina Maria Negroni, no primeiro dia de aula disse que o objetivo da pós-graduação não era de formar escritores e sim de criar espaços para encorajar as dúvidas e perguntas, pois a verdadeira escritura sempre é uma arte subjetiva, acima inclusive da matéria que esteja sendo estudada. Assino embaixo disso aí. Ricardo Piglia disse que “a literatura é a experiência mais intensa que existe”. Até hoje, essa frase é o meu lema neste ofício tão árduo. E tento passá-la para os meus alunos, pois, sem processo, confronto, intensidade e pulsão, não há escritura. Seja sacra ou profana, sem gana, não rende. Resumindo: é possível sair mais “enriquecido” literariamente de uma oficina, curso ou pós-graduação de escrita criativa, mas se a pessoa vai se tornar ou não um escritor, isso é algo que só as suas obras poderão dizer.

 

DA – Nesse mesmo campo, a sua convivência com jovens que pretendem se tornar escritores lhe mostra que há neles a formação de leitor. Os jovens estão preocupados em ler bem, investigar com afinco o que está acontecendo na literatura contemporânea brasileira, ou sofrem do mesmo mal que acomete os leitores em geral?

BRUNO RIBEIRO – Uma professora de Campina Grande, Anna Giovanna, passou o meu romance “Febre de Enxofre” para os seus alunos lerem. O resultado foi sensacional: os alunos se vestiram como os personagens do livro, criaram cartazes e banner, e eles fizeram uma sabatina incrível comigo. Muitos ali leram muito bem o meu livro e tascaram perguntas instigantes e profundas. Eram alunos do segundo ano e, veja bem, essa é uma época da vida onde dizem que a garotada quer saber de tudo, menos ler. Claro que não vou pegar este recorte da minha vida para falar que os jovens amam ler, mas o utilizo para falar que quando um professor luta para colocar na mão dos seus alunos obras mais desafiantes, instigantes, e, melhor ainda, botam o autor dessa obra na sala de aula, a coisa muda um pouco. Porque muitos alunos ainda veem escritores como seres arcaicos, corcundas, velhos chatos, mortos. Logo, apresentar um escritor local para eles e o livro dessa pessoa, mostrar que é possível fazer uma literatura distinta daquilo que eles precisam ler para passar do ENEM, pode sim mudar suas vidas. Enquanto professor, eu sempre apresento trechos de livros de escritores independentes. Quando leio o começo do romance “Palavras que devoram lágrimas”, do Roberto Menezes, a galera vibra, adora, assim como quando leio o começo visceral e lírico de “Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida”, da Micheliny Verunschk. O mesmo ocorre quando leio trechos de “Modos inacabados de morrer”, do André Timm. “É sério que pode fazer isso na literatura?”, muitos alunos perguntam. São obras que dificilmente cairiam na mão da galera, então é bacana falar que esses livros estão sendo lançados atualmente e por autores vivos. Quando ministro oficinas em colégios, um ou outro tem interesse em se aprofundar no que apresento, e é nisso que creio: nos pequenos atos e revoluções. Não penso em mudar o todo, mas se conseguir impactar uma pessoa ali, pra mim já tá valendo. Formação de leitores é isso: um trabalho de formiguinha, que deve ser feito com paciência e paixão, sem esperar grandes e imediatos retornos.

 

DA – Hoje há um consenso desanimador de que quem realmente lê os livros dos autores nacionais são os próprios autores nacionais. Isso, ao meu ver, configura-se em razão de algumas circunstâncias: a falta de distribuição, as baixas tiragens, a crise do mercado editorial e o baixo consumo dos leitores. Publicar um livro diante de todos esses obstáculos, portanto, não seria mais um capricho? Literatura, no Brasil, é mais paixão e resistência que a construção de uma carreira? 

BRUNO RIBEIRO – Já parei pra pensar sobre isso: por que eu publico um livro? É difícil pensar em que estado eu estou na minha “carreira”. Tanto que nem uso o termo carreira literária, e sim vida literária. Nem é para pagar de diferentão, mas é por pensar de verdade que a literatura atravessa mais a minha vida do que uma carreira. Fora o blá blá blá de só recebermos 10% do livro e tudo isso, o que mais ferra nossa vida é a distribuição. O pessoal do cinema sofre o mesmo. Se houvesse uma distribuição melhor, a coisa mudava. Basta ver o caso do Giovanni Martins e o seu “O sol na cabeça”. Um livro de literatura e não um best-seller exportado ou um livro de youtuber vendendo pra caramba? Como pode isso? Distribuição, boa tiragem e investimento. Sem dinheiro, é complicado de chegar, por isso mesmo que a internet e os diversos meios alternativos de publicação, divulgação e distribuição são tão importantes. Bater de frente com o mercado é dar soco em ponta de faca, a verdade é que precisamos estar em outros lugares e driblar as imposições do capitalismo. Por isso participo de todos os eventos que me chamam, vou para as escolas, feiras, puteiros, igrejas, até pra livraria eu vou se me chamar, porque é importante ocupar os espaços e jorrar sua palavra – literatura – no ouvido alheio. No final das contas, o que me importa é tentar estar nesses lugares sem fazer tantas concessões também, sabe? Sigo o lema do Zagallo: “vocês vão ter que me engolir”. Minha literatura é isso e fim de papo. E é uma luta tremenda seguir essa linha intransigente, vez ou outra até penso se publicar é tudo isso mesmo, até porque vou continuar escrevendo, publicando ou não, mas aí penso um bocado e decido entrar no jogo, afinal de contas, apesar das desgraças, pelo menos eu me divirto um pouco e consigo um ou outro leitor.

 

DA – Voltando ao seu primeiro romance, “Febre de enxofre”, temos um vínculo entre dois personagens que se conforma uma relação de vampirismo. Logo no início de “Anos de formação”, Emilio Renzi, alter ego do escritor argentino Ricardo Piglia, tenta definir o que é a escrita para si; “seria uma mania, um hábito, um vício”, ele se pergunta, sem chegar a uma conclusão. O que é essa necessidade de escrever? Tornar-se escritor é, de fato, um pacto vampiresco? Algo que se aloja dentro de si e cresce na dependência?

BRUNO RIBEIRO – Amo essa ideia do pacto vampiresco, provavelmente por me sentir como um escritor do século XIX vivendo no XXI: a criação pra mim bebe bastante do romantismo, decadentismo e simbolismo. A diferença é que eu sugo essa inspiração e injeto uma boa carga de humor e deboche nela, pois a transgressão pra mim só funciona se houver riso e certa desconstrução, ou seja: um não se levar tão a sério. Quanto a isso, admiro e me inspiro muito no Michel Houellebecq; ele também bebe de influências românticas e decadentistas do século XIX, mas consegue reinventar os lugares comuns e seriedades dos autores deste período com sua linguagem e olhar repletos de contemporaneidade e humor ácido. No excelente texto “Permanecer Vivo: um método”, ele diz que “um poeta morto não escreve. Daí a importância de permanecer vivo”. Acho que essa frase consegue condensar tudo o que penso enquanto projeto literário: há humor, poesia, absurdo, cinismo, profundeza. O humor – aquele debochado que critica e fala verdades afiadas – é uma ferramenta essencial nos meus livros, assim como a própria descrença nos procedimentos que utilizo. E por isso que nego o gênero e tudo que devoro para escrever um livro também… Às vezes nego até a linguagem. A dependência à escrita, aquele velho jargão compatível comigo e vários comparsas: “escrevo para sobreviver”, por exemplo, é muito tosco. Não há como falar uma frase dessas sem colocar uma gargalhada em seguida; é meio sofrível ver gente levando a sério a desgraça que é escrever. O vício pra mim, o pacto vampiresco e infindável do escritor que aloja e não sai mais, é como um bobo da corte flutuando em abismos de mentirinha, mas que se o cara pular no negrume se tornam reais e ele afunda; é o sorriso e o susto, o grotesco inserido numa grande gargalhada, e é neste campo tão conflitante que estou na literatura, mergulhado em um pacto que causa dependência e risos nervosos.

 

DA – Seria possível recriar o mesmo experimento de “Glitter”, porém com escritores? Qual seria a dinâmica e quem você acha que deveria participar?

BRUNO RIBEIRO – Seria possível, claro! O Manuel da Costa Pinto faria as vezes do estilista ermitão de “Glitter” e selecionaria vinte e um escritores para participar do “A Literatura Viva”: uma espécie de grande sarau que seria finalizado com o fuzilamento dos escritores. O assassino que estaria responsável pela chacina lírica seria o franco-atirador Marcelino Freire; segue a lista dos vinte e um: eu, Roberto Menezes, você (Sérgio Tavares), Aline Bei, Bernardo Carvalho, Tiago Germano, Cláudia Lemes, Débora Gil Pantaleão, Adriane Garcia, Cristina Judar, Noemi Jaffe, Mike Sullivan, Ricardo Lísias, Adriana Brunstein, Tadeu Sarmento, Eduardo Sabino, Irka Barrios, Micheliny Verunschk, Ana Paula Maia, Mariana Basílio e André Timm. Mas, assim como todos os conflitos que ocorrem dentro da nossa bolha literária, a plateia descobriria rapidamente que as balas eram de mentira e que os vinte e um escritores só estavam simulando suas mortes: era uma performance para divulgar uma antologia de contos e poemas sobre o tema: A MORTE DO AUTOR. Todos aplaudiriam e se abraçariam no final do ato; tiraríamos muitas fotos para o Facebook e, enquanto um escritor bravo dava um soco murcho no peito de um escritor chorão, iríamos pra casa rastejando e carregando nossas vitórias e louros nas costas cansadas de tanto escrever e tirar fotos.

 

Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês e o espanhol. Participa da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.

 

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