Pequena Sabatina ao Artista

Por Sérgio Tavares

 

Ana Paula Lisboa é uma das grandes vozes da atualidade. “Favelada e carioca de nascimento, a mais velha de quatro irmãos, filha de dois pretos”, como se define, seus textos em prosa e em poesia trazem toda a potência, a riqueza e a representatividade da cultura afro-brasileira, chamando atenção, com igual vigor, para a ancestralidade, a produção cultural das mulheres negras e também se manifestando contra ações que silenciem, infrinjam direitos e tirem espaços dos negros dentro e fora do Brasil.

Dividindo a vida entre o Rio de Janeiro e Luanda, dirige a Aláfia e a Casa Rede, espaços de produção de arte e cultura na capital angolana. No Brasil, escreve regularmente para o Segundo Caderno, do jornal O Globo, um desejo que vem de muito jovem, um desejo de ser lida que nasce aos 14 anos, quando escreve seus primeiros contos e poesias. Hoje, seus escritos estão em coletâneas nacionais e internacionais, porém, mais que uma escritora, prefere ser reconhecida como artista textual, utilizando da palavra escrita e da falada em diferentes plataformas, com o intuito de promover a visibilidade na narrativa e na gramática negra no mundo.

Em entrevista exclusiva a Diversos Afins, Ana fala sobre sua vivência com a literatura, suas experiências com a leitura de mulheres negras, aborda o problema da educação e do racismo, além de denunciar o desvirtuamento do que se entende como “literatura negra” e a falta de espaços para a publicação de autores negros no mercado editorial brasileiro. Com respostas francas, marcadas por um misto de indignação, inteligência e personalidade, a autora aponta problemas antigos e da política atual, celebrando nomes como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Machado de Assis, sem nunca baixar a guarda no que se refere ao respeito às tradições africanas. “Para mim, é imprescindível que Machado de Assis seja negro, não por uma fantasia de representatividade, mas por uma reparação histórica do apagamento. Não conseguiram apagar suas palavras, porque ele era um gênio, então apagaram seu rosto, porque era inaceitável um gênio negro”, sentencia.

 

Foto: arquivo pessoal

 

DA – Um dos pontos centrais, tanto de seus textos ficcionais quanto de suas crônicas, é chamar atenção para a cultura afro-brasileira, em especial para a literatura produzida por mulheres negras. Queria saber, a princípio, sobre a sua primeira experiência de leitura de um autor negro. Quando ocorreu e o que representou para você?

ANA PAULA LISBOA – Eu sinceramente não me lembro da primeira leitura, o primeiro lugar em que me senti representada pela cultura afro-brasileira foi na música e na dança. Pensando agora, talvez a Elisa Lucinda fosse alguém que eu sentisse algo especial, uma poesia de voz feminina mas que não representava a “mulher universal”, tinha ali questões que eram só dela. Eu me lembro bem quando li “Ponciá Vicêncio”, da Conceição Evaristo, que a sensação era de que tudo que era possível escrever sobre ser uma mulher negra no mundo estava naquele texto. Eu, inclusive, fiquei algumas semanas sem escrever nada porque parecia que não havia mais o que escrever.

 

DA – Dentre outros meios, você escreve regularmente para o Segundo Caderno, do O Globo. Baseado nessa experiência de colunista, como analisa a importância de tratar de temas representativos, sobretudo no que diz respeito às mulheres negras, num jornal de larga circulação nacional? Encontra ainda algum tipo de resistência?

ANA PAULA LISBOA – A resistência que eu encontro é do próprio pensamento e estrutura do Brasil, um país em que, por mais que não tenha passado pela experiência do Apartheid, os lugares para pretos e os lugares para brancos estão muito bem definidos, não numa placa, mas no próprio imaginário das pessoas. Então, ter uma mulher negra jovem escrevendo um jornal de grande circulação é ainda estranho para muitas pessoas. Eu adoro escrever no jornal, era um desejo desde muito jovem. Escrever, pra mim, nunca foi sobre só escrever, mas sobre ser lida, então, quanto mais pessoas lendo, melhor. Os orixás trabalham para que as coisas aconteçam da forma que elas têm que acontecer. É muito bom chegar em pessoas fora da minha bolha, de outros estados, de outros países, ou em salas de aula.

 

DA – Entrando no universo da literatura, o livro “Silêncios prescritos: estudo de romances de autoras negras”, da doutora da USP Fernanda R. Miranda, traz uma informação espantosa de que, em 200 anos de literatura brasileira, apenas oito autoras negras publicaram romances. Você acredita que, neste caso, a mínima quantidade de obras está diretamente associada a um processo sistêmico de silenciar as mulheres negras? E como isso ocorre?

ANA PAULA LISBOA – Está ligado a vários processos, não há um motivo único, porque o racismo é um monstro com muitos tentáculos. A questão principal, nesse caso pra mim, é a publicação, porque tem muita gente escrevendo, mas não tem tanta gente sendo publicada. Todos os anos, os mesmos nomes estão nas estantes. Depois, há também outras coisas: eu estou passando pela experiência de escrever um romance e é uma coisa muito difícil. Escrever uma narrativa longa é muito trabalhoso, requer concentração, tempo, espaço e, às vezes, dinheiro para bancar essa escrita. Quantas pessoas têm isso? No buraco de tempo que a gente consegue entre tantos trabalhos domésticos e na rua, o que dá para fazer muitas vezes são só as narrativas curtas, as poesias. Isso também é um dos motivos porque muitas mulheres e homens negros publicam em coletâneas, como, por exemplo, são os Cadernos Negros, que existem há mais de 40 anos. A outra coisa é que, além de criar espaço nas editoras que já existem, é preciso também que sejam abertas novas editoras, de donas e donos pretos. Esse também é um espaço que podemos e devemos ocupar.

 

DA – Outra questão forte e alarmante está na afirmação de que, no rol de todas as expressões artísticas, a literatura é aquela menos acessível ao artista negro, pois tem o poder de colocá-lo como figura central, de projetar sua voz. Penso que isso gera um deslocamento do campo literário e prova um racismo que transcende a ficção. Sendo assim, você acredita que o preconceito é o mal que explica a escassez da literatura produzida por negros, ou é um pensamento muito limitado, que encobre outros problemas?

ANA PAULA LISBOA – Todas as opressões cabem dentro da literatura, é uma grande luta para saber quem vai narrar o Brasil, qual Brasil é válido de ser contado em palavras escritas. A educação é uma grande questão, porque os negros foram proibidos de ter acesso a escola, era um tal de “vou aprender a ler, pra ensinar meus camaradas”. A entrada na universidade continua a ser uma luta, um espaço que a todo momento tentam retirar. E mesmo dentro, a luta por um conteúdo que nos inclua também permanece. Tudo é um grande plano para nos afastar e não nos deixar emancipar, um plano que todos fazem parte de uma forma ou de outra, ainda que não percebam. Por isso eu acho a ficção tão importante, ela não se desloca do tempo e do espaço que nos prende. É o contar histórias dos griôs, é só inventando mundos outros que vislumbrarmos sair desse em que estamos.

 

Foto: arquivo pessoal

 

DA – Em 2018, o romance “Torto arado”, do baiano Itamar Vieira Junior, ganhou o Prêmio Leya de Literatura, dando voz a duas personagens negras num épico passado num Brasil profundo. Pensando na questão do lugar de fala, de alguma forma um homem dando voz a personagens femininas é um problema? De que forma a ausência de uma autora vocalizando questões ligadas ao universo feminino impede com que se chegue a uma verossimilhança representativa?

ANA PAULA LISBOA – Eu não li o romance do Itamar ainda, mas ouvi coisas muito bonitas sobre ele. Eu acho que ser um escritor é a possibilidade de ser outros, de ter outras vozes, de estar em outros mundos, então não vejo um homem criando as histórias de mulheres como um problema. As coisas são só coisas, nós é que damos funcionalidades a elas. A questão, pra mim, da escassez de personagens negros na própria literatura é porque o homem branco escritor do sudeste, que é o publicado, só fala de si.

 

DA – Neste caso, há também a questão do Machado de Assis branco, mulato ou negro? Qual a relevância dessa discussão para você? 

ANA PAULA LISBOA – Eu sou apaixonada pela literatura de Machado de Assis. Na verdade, voltando à primeira pergunta, eu me lembro da primeira vez em que li “Dom Casmurro”, e ele começava escrevendo algo como pegar o trem para o Engenho Novo. Na época, eu morava no Engenho Novo e, pra quem conhece, sabe que não é um bairro pra se ter muito orgulho. Mas foi naquele dia em que eu me apaixonei pelo Engenho Novo. Para mim, é imprescindível que Machado de Assis seja negro, não por uma fantasia de representatividade, mas por uma reparação histórica do apagamento. Não conseguiram apagar suas palavras, porque ele era um gênio, então apagaram seu rosto, porque era inaceitável um gênio negro.

 

DA – Tratando agora de autoras negras, um caso marcante é o da mineira Carolina Maria de Jesus, cujo livro de estreia, “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, é considerado um best-seller e segue encontrando novas gerações de leitores e de admiradores. Contudo, é uma literatura que paradoxalmente não trouxe larga visibilidade para a figura da autora, ou mesmo seu devido reconhecimento. A que se pode imputar tal discrepância dado o caráter livremente autobiográfico do livro?

ANA PAULA LISBOA – São várias as questões, porque Carolina, diferente do Machado, tinha rosto, tinha traços, tinha corpo, um corpo preto retinto. Carolina era uma mulher muito forte, ela se conhecia e conhecia o Brasil, esse Brasil racista. Ela não se deixou ser colocada na caixa da “favelada”, como se essa fosse a única narrativa que ela pudesse escrever. Como não conseguiram apagar seu rosto, tentaram apagar seus escritos, também geniais.

 

DA – Outra autora em foco é a também mineira Conceição Evaristo que, em 2018, esteve no centro de uma campanha nas redes sociais para que fosse a primeira escritora negra a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras (cadeira que acabou sendo preenchida pelo cineasta Cacá Diegues). Na ocasião, um dos assuntos mais discutidos foi se o estofo de sua obra lhe garantiria força para disputar a vaga ou se sua escolha se devia a sua representatividade no meio literário. Qual sua percepção sobre essa questão?

ANA PAULA LISBOA – Conceição Evaristo é, pra mim, a maior escritora do Brasil. Conceição não entrou para Academia Brasileira de Letras porque a branquitude não gosta de ser questionada, não suporta ser racializada e não tem nenhuma vontade de reconhecer seus privilégios. Reconhecer privilégios é reconhecer a sua culpa em tudo isso e ninguém quer se sentir culpado. No Brasil, o racista é sempre o outro. Mas Conceição não perde em nada, na verdade quem perde é a Academia Brasileira de Letras. Ela é uma deusa e deusas já nascem imortais.

 

Foto: arquivo pessoal

 

DA – Você tem contos e poesias publicados em coletâneas nacionais e internacionais. No entanto, numa visão ampla da literatura contemporânea brasileira, ainda há poucos autores negros publicando. Por parte das editoras, em especial os grandes selos, você percebe que ainda há resistência para se publicar autores negros ou preconceito sobre temas ligados ao universo afro-brasileiro?

ANA PAULA LISBOA – Para que existam na literatura publicações de literatura negra, é preciso que haja editores que saibam ler essa literatura, e há muita gente nesse mercado que não sabe ler. Depois é o mercado, que está percebendo lentamente que os negros compram livros, leem livros e que nós não lemos de qualquer coisa. É engraçado porque se um carioca da Zona Sul resolve comprar um livro só porque conhece o autor e a história se passa no Leblon, ninguém acha isso estranho. Mas se eu disser que comprei um livro só porque ele se passa na Complexo da Maré, ou porque ele foi escrito por uma mulher negra, acham que eu estou à procura não de boa literatura, mas de representatividade.

 

DA – Falando em preconceito, temos hoje, no governo federal, um presidente da Fundação Palmares que explicitamente menospreza a história de resistência e luta dos negros no Brasil, reiterando declarações racistas. Você acredita que essa é a pauta de um indivíduo completamente transloucado ou há, por trás disso, toda uma ação institucional para sufocar e anular as políticas públicas e reconhecimento histórico-sociocultural do negro no Brasil?

ANA PAULA LISBOA – Eu acho que nada é por acaso, não acho que buracos se abrem do nada, a gente sempre caminha até o abismo, mesmo que não se dê conta disso. A minha sugestão, inclusive, é a que mudemos o nome da Fundação Palmares enquanto o senhor esteja presidente. A luta ancestral não merece ter seu nome tratado assim.

 

DA – Há uma máxima de que o esporte é um instrumento para socializar e dar oportunidades reais a crianças situadas nas áreas mais pobres do país. Porém, não deveria ser o único a ter essa disponibilidade. Você acredita que a cultura, em especial a literatura, poderia ser também um caminho? E essa ausência não explicaria o baixo número de autores negros em atividade no Brasil?

ANA PAULA LISBOA – Ninguém tem muita paciência com a criança e o jovem negro, há pesquisas que falam que professores são mais agressivos e se recusam, às vezes, a explicar para crianças e jovens negros na escola, que crianças negras passam mais tempo chorando ou sujas nas creches. O adolescente branco, de classe média, geralmente quando começa a dar problema vai para terapia, isso não acontece com jovem negro. Então, é mais fácil botar ele para jogar futebol, gastar energia, colocar para fora aquilo que tá incomodando do que sentar com ele e efetivamente explicar o mundo. Ao mesmo tempo, eu acho que a cultura ou o esporte não tem o dever de salvar ninguém, a criança e o jovem preto não precisam de salvação, precisam de repertório de mundo, terem acesso a estímulos para que possam fazer boas escolhas para a vida. Esse é um direito que está inclusive na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

 

DA – O que pensa sobre a expressão “literatura negra”? Há, na confirmação do termo, um fator de representatividade, de força para esses autores? Ou literatura brasileira deve ser vista em sua multiplicidade, incorporando temas e contextos sem que seja distinguida por qualquer partição?

ANA PAULA LISBOA – Eu não sou acadêmica ou crítica literária, eu sou só uma escritora. Hoje eu percebo que o que eu escrevo é literatura negra e não vejo nenhum problema em ser colocada nessa estante.  O que me incomoda é a classificação “escritora negra”, porque geralmente quando me colocam nessa caixa quer dizer que eu só possa escrever, ver, ou falar a partir das questões do racismo. Se eu pensasse ou escrevesse sobre racismo 24 horas por dia, eu já teria morrido de depressão. É óbvio que ser uma mulher negra vai aparecer no que eu escrevo, assim como Clarice Lispector ser ucraniana criada no nordeste aparecia na literatura dela. Ser negra não é a minha limitação, na verdade é o que me amplia.

 

DA – Para os leitores que querem acessar a literatura afro-brasileira, o que você recomenda de contemporâneo? Quais autores ou livros são fundamentais hoje?

ANA PAULA LISBOA – Leiam qualquer coisa da Conceição Evaristo, até receita de bolo. Meu preferido, nesse momento, é “Becos da Memória”. “Um Defeito de Cor”, da Ana Maria Gonçalves, é tipo a bíblia. “Meio Sol Amarelo”, da Chimamanda Ngozi Adichie, é de destruir emocionais. Nesse momento, estou lendo as poesias da Ryane Leão, em “Tudo Nela Brilha e Queima”, e os contos da Cidinha da Silva, em “Um Exu em Nova York”.

 

DA – A literatura, por si só, tem o poder de ser um instrumento de representatividade social, ou depende de uma combinação de fatores?

ANA PAULA LISBOA – Não sei responder.  Eu acho que a literatura como qualquer outra arte está inserida no tempo e no espaço de uma sociedade, então de alguma forma ela sempre vai representar algo. Representação não é um problema do escritor, o problema do escritor, ou a tarefa do escritor, é escrever: é criar histórias, mundos, pessoas e esperar que quem esteja do outro lado entenda a história que a gente queria contar.

 

Sérgio Tavares nasceu em 1978. É crítico literário e escritor, autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Participou da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris. Edita o site de crítica literária A Nova Crítica.

 

 

Clique para imprimir.

2 Comentários

  1. Que entrevista brilhante e encantadora!

  2. Consciente e pragmática. Precisamos de mais moças na literatura.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *