Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

 

O ofício poético é esse debruçar sobre a vida que acontece, constatação dos instantes, explosão de sentidos e mistérios. É dado ao poeta pensar sobre seu tempo, sua realidade, seus desvarios. É dado ao poeta, também, esculpir em palavras o espanto e o estranhamento que perpassam o ato de existir. Quem escreve sabe que o tempo impõe desafios, modulando cargas que se equilibram ou não na dinâmica das emoções, ora fugidias ora permanentes.

Por mais que especulemos sobre as razões do engenho com os versos, empreendendo toda sorte de análises particulares sobre uma determinada obra, nada substitui o diálogo direto com o autor. Nesse gesto de escuta, talvez o melhor resultado seja aquele que opera dentro da lógica da provocação. E o que seria isso? É um deixar que o escritor transite livre pelas suas ideias, mas não sem antes ser estimulado a movimentar territórios inquietantes em matéria de pensamento.

Aquele que entrevistamos por agora na revista não tem o perfil de fugir às provocações e parece estar bem à vontade quando um eixo filosófico se desenha no horizonte das falas. Trata-se do poeta capixaba Jorge Elias Neto, a quem poderíamos definir como uma espécie de artífice da palavra. E dizer isso do autor é ir além da ideia de que nele está o cálculo arquitetado para fazer eclodir a forma em seus versos. Um olhar para sua obra nos permite dizer que seus poemas emanam epifanias abundantes da vida.

Jorge é, de fato, um poeta de inquietações. Quando um tema o assola, é capaz de mergulhar fundo em toda sorte de leituras adicionais que o façam movimentar compreensões mais robustas. Está atento aos sinais da existência e, tanto em suas falas aqui presentes quanto em seus poemas, notamos um caminho de busca: sentir a experiência humana como um protagonista face aos cenários. Dessa maneira, ele é um alguém que não se furta em saborear os enfrentamentos da vida, refletindo sobre nossa condição de seres que interferem a todo tempo no transcurso da história.

Dono de uma trajetória que contempla a escritura de livros como “Verdes Versos” (Flor&Cultura, 2007), “Rascunhos do absurdo” (Flor&Cultura, 2010), “Glacial” (Patuá, 2014), “Sonetos em crise” (Mondrongo, 2020), dentre outros, Jorge Elias Neto atravessa agora nossos sentidos com o seu pungente e provocador “Manual para estilhaçar vidraças”, recentemente lançado pela Editora Cousa. Seu novo rebento poético é verdadeiro roteiro para cutucar uma coleção de sobressaltos da contemporaneidade com vara curta. Ou, como o próprio poeta nos diz, “uma alternativa de salvação”. De todo o dito, a entrevista serviu, sobretudo, para também mostrar um autor que presentifica o seu lugar no mundo.

 

Jorge Elias Neto / Foto: arquivo pessoal

 

DA – “Manual para estilhaçar vidraças” é uma verdadeira reunião de modos de existir. Sob o manto da provocação, a obra desfila cenários distintos da experiência humana. O que dizer de tais caminhos?

JORGE ELIAS NETO – Fabrício, esta nova oportunidade de ser entrevistado por você, para publicação nesta que foi a primeira revista eletrônica que divulgou minha obra e uma entrevista, isso no ano de 2009, quando eu me encontrava finalizando o meu segundo livro, ”Rascunhos do absurdo”, me despertou a necessidade de reler a nossa conversa da época. Foram poucas as entrevistas que dei nestes quase 20 anos de produção poética e a releitura que ora acabo de fazer me causou algumas surpresas. A primeira foi descobrir o momento no qual iniciei a abordar um tema específico para escrever poemas e, como no caso do “Manual para estilhaçar vidraças”, um livro. Naquela época, após a finalização do livro, ocorreram os eventos em Gaza e o poeta, e atualmente editor da Mondrongo, Gustavo Felicíssimo, me propôs um desafio: escrever uma trilogia sobre o tema. Foi algo que fiz com muito prazer e se transformou no embrião para algo que se mostra recorrente em minha obra. Depois veio o convite do saudoso Pipol, editor do Portal Eletrônico Cronópios, que resolveu convidar 50 poetas brasileiros para escrever um poema para um livro em homenagem ao Éder Jofre. Sentei, estudei o tema e, de impulso, escrevi 43 poemas. Enviei para o Pipol, que me propôs incluir como um caderno especial dentro do livro. Infelizmente ele faleceu. Mas Eduardo Lacerda, editor da Patuá, resolveu publicá-lo com o título de “Breve dicionário (poético) do boxe”. Depois vieram “Glacial”, “Cabotagem” e agora o “Manual”… Trago para o “Manual para estilhaçar vidraças” questões rotineiras, irrelevantes, executadas, muitas das vezes, de forma mecânica por todos nós. Já alguns poemas lidam com conflitos existenciais, abordam as questões que norteiam e creio permanecerão ao longo dos meus escritos. Boa parte dos poemas foram escritos em um curto espaço de tempo; escrevi 11 poemas em uma noite.  Alguns temas foram enumerados antes da escrita. Outros partiram de imagens que me ocorreram ao longo das horas que fiquei imerso na busca da estruturação dos poemas. Quando escrevo tenho como primeiro objetivo o leitor que sou. Desta forma, o intrincado das imagens, um certo grau de hermetismo involuntário  (e que, creio, afasta muitos leitores de minha escrita) e a proposta de trabalhar muito com as ideias acabam prevalecendo. Como “tenho uma ideia” do local que cada palavra ocupa em meu inconsciente, sinto-me confortável quando revisito os poemas. Já o leitor, e isto aprendemos com o tempo, tem suas leituras particulares e muitas vezes, com convicção (e isso já é sabido de todos), nos sinaliza interpretação imensamente distantes do que busquei no poema. E é isso, no “Manual”, ora falando sério, ora com ironia, proponho uma reflexão sobre o cotidiano, tento usar da palavra para dizer da irrelevância dos nossos atos, da insignificância relativa de nossa vida e, como nos diz o poeta e psicanalista Ítalo Campos no posfácio do livro:   Para ler bem o Manual Para Estilhaçar Vidraças é preciso fazê-lo sem pressa e com cuidado. Em muitos casos ele apenas “prega uma peça”. Ele é ora um espanto, ora um acalanto, mas em ambos os casos seu propósito último é o de estilhaçar sentidos. O leitor se surpreende ora com o inusitado, ora com o humor, deixando-se flagrar pela trapaça que o poeta faz com o senso comum, embora nada esteja desarticulado. O poema é minha forma de rebeldia contra o cotidiano. Este livro é uma proposta alternativa que somente o olhar poético para a vida é capaz de nos dar, uma alternativa de salvação.

 

DA – Rebelar-se contra o cotidiano através do engenho poético é desacomodar certezas?

JORGE ELIAS NETO – Aqui se impõe discutir duas questões fundamentais: o papel da arte em minha vida e algo muito mais prático neste momento histórico, a relação entre certeza e dúvida. Costumo dizer que cumpro com os pés o que é devido e cubro com sonhos o desmedido. Penso que todo percurso é uma ilusão necessária, e a arte é meu ato, sim, de rebeldia; a arte é o cosseno, o obsceno e outras peripécias. A minha experiência como médico ao longo dos últimos 30 anos me fez ver e ouvir muito e construir uma certa paz no remendar das imagens e das palavras. Eu vou apreendendo as palavras e guardando-as no silêncio. E chega o dia que o poema se faz dos fiapos destas recordações, ajeitadas aqui e ali com algum enchimento, com algum artifício adquirido, ou mesmo com algum vício repetido. Talvez  este “Manual para estilhaçar vidraças” seja a tradução deste meu “ato de rebeldia”, como você bem diz. Por isso digo que primeiramente escrevo para mim. Sei que serei um dos poucos, talvez o único, que terá o interesse em folhear o manual no futuro. Nada como uma cartilha para iluminar e evitar que nos desgarremos ainda mais neste cotidiano de ilusões multimidiáticas. Passando já para o segundo ponto, acho que você foi muito feliz quando utilizou a expressão “desacomodar certezas”. Quando jovem, sempre me senti inferior aos demais por não ter certeza de nada. Hoje digo que a dúvida é o alicerce de minhas convicções. Penso ser necessário resgatar o valor da dúvida… Mas isso valeria se a dúvida não fosse algo anacrônico para a sociedade atual. Existe uma suposta razão, uma “verdade” que encobre as dúvidas dos homens. Vivemos um tempo de desperdícios e de bandeiras. No meu caso, aprendi que a ciência é um divino manancial de  verdades fluidas e dúvidas eternas. Também aprendi que a certeza é estática e a dúvida é dinâmica. Fico então com a dúvida. E como “desacomodo a certeza”? Convivendo com a ideia que, do útero à morte, seguimos renascendo. Afinal, o principal conflito humano é mediado pelo nada. A morte é parteira dos desesperados e desespero dos inocentes. E a paz é um corte na carne da convicção, o osso aparente na trincheira criada pela força da humildade. Tento, com os meus poemas, como no caso do “Manual”, lembrar ao homem que ele é um deus que se perde na encruzilhada da ausência. Daí o poema que dá nome ao livro dizer da sombra e da escuridão. Proponho ao leitor o confronto com a sombra, pois ela é a experiência diária da morte, o ato introdutório do homem no esquecimento. A sombra sinaliza ao homem o poder da luz que não nos deixa esquecer que estar de pé é uma circunstância, uma transitoriedade. A sombra é a seta que o céu projeta sobre a soberba da consciência bípede.

 

DA – Ao que parece, temos alguma dificuldade em nos compreendermos como sendo simultaneamente luz e sombra. Seguimos engendrando verdades e inventando versões para narrar nosso imperfeito trajeto no mundo. Na sua visão, quem é esse sujeito contemporâneo? 

JORGE ELIAS NETO – Há alguns anos li um livro que me intrigou muito, “A negação da morte”, parecia que eu conseguia estabelecer uma ligação tão procurada com minhas leituras da obra de Nietzsche, Camus e Emil Cioran.  Nele, o antropólogo Ernest Becker me apresentava a obra de um dos grandes discípulos de Freud, Otto Rank. Busquei os livros de Rank e encontrei uma interessante descrição do papel da sombra na história da humanidade. E a sombra passou a ser tão importante que me ocorreu escrever um livro que denominei “XXI – Diálogo das sombras”, ainda inédito. Nele trato especificamente do sujeito contemporâneo e este diálogo com a sua sombra, esse duplo Rankiano. E para estabelecer uma ligação entre sua pergunta e minha opinião deixo aqui um aforismo poético que escrevi: Não identifiquei entre os destroços nenhuma sombra de dúvidas. No meu entendimento, mantendo sempre como lastro a dúvida, tem sido fundamental a leitura das obras produzidas a partir da segunda metade do século XVIII e, principalmente, a obra do século XIX. E não posso deixar de sinalizar a minha admiração pessoal pelos autores russos. Ler Gogol, Turguêniev, Tolstoi e Dostoiévski tem sido fundamental para entender a transição para o século XX e fazer uma ligação com a produção da obra de Marx, Engels, Feuerbach, com a efervescência de Darwin, as proposições de Freud e por aí em diante. Foi a partir daí que busquei entender toda a frustação quando ficou claro que, por detrás de todas as propostas de uma sociedade mais justa, existia o homem, e que os “leões” insanos rugem mais forte… Adoro reticências… Elas dizem do inacabado das dúvidas… Nesse momento, muitos, como Octávio Paz, indagaram se adiantavam essas pedras empilhadas apoiando precipícios? De que vale a rosca e o parafuso no vazio? Entenderam perfeitamente que o ódio não é fonte, é desperdício. Era o momento do homem medir os seus fantasmas pela hora do dia que admirava a sua própria sombra. E esta sombra tornou-se imensa. Só que a visita das sombras tem um pio ingrato, é a cor branca da culpa nos delatando por nossas atrocidades, nossa vaidade, nossa hipocrisia. É difícil aceitar que existe um lado obscuro na fronteira imposta pelos que buscam o paraíso terrestre. Mas, no meu entendimento, na volta devemos percorrer o caminho da sombra. Mas a mentira seguiu sendo um tônico revigorante… Um assunto tão denso tomaria muito tempo do leitor, por isto prefiro deixar aqui um poema inédito que talvez sintetize meu olhar sobre este “sujeito contemporâneo” e sua sombra. Afinal, o poema é o um esforço de silêncio de meus olhos cansados.

 

Retorno ao rascunho do mundo

Eis o inerte,
o sucumbido,
aquele antes do instante
em que se dissipou a paz.

Desperta homem,
vê a grandeza do seu nome
e o Não, imposto ao seu destino.

A página leve não tem a tessitura do seu caminho
e o que lhe resta é o estampido
ou um pilar qualquer que te convide ao abismo.

 

Madeixas das sombras

O Eu apagado, descrente,
o crucifixo do outro
e toda nudez
do medo.

Meu martírio:
esta fogueira que não vesti.

Se restam fagulhas,
são versos roubados,
pés trocados
de outros passos
no silêncio das cinzas.

 

Jorge Elias Neto / Foto: arquivo pessoal

 

DA – No atual estado de hiperconexão em que estamos mergulhados, talvez tenhamos perdido a capacidade de nos recolhermos em nós mesmos, de sermos silêncio para  fruição das coisas e sentimentos. Em que medida tamanha absorção com consequente efeito de dispersão interfere, por exemplo, na prática literária de leitores e escritores? 

JORGE ELIAS NETO – Nos últimos anos tenho escrito alguns pequenos ensaios abordando, dentre outros temas, este “tempo sem tempo” que permeia a realidade das relações interpessoais e consigo mesmo do homem contemporâneo. Sempre digo de minha condição de alternância entre um pessimismo e um realismo entusiasmado (uma migração que faço entre um olhar mais cético de Cioran e do brasilianíssimo Suassuna). Isto me levou ao “Ornitorrinco do pau oco”, nome do meu livro publicado pela editora Cousa em 2018. Tomo a liberdade de incluir aqui alguns esclarecimentos sobre esse ser inusitado:

 

Há que se entender ou não o ornitorrinco do pau oco?

É chegado o tempo em que o silêncio e a contemplação passaram a fazer parte do comportamento de um transgressor. É o que conclama a balbúrdia multimidiática de nossos dias.

………………………..Na verdade, nada mais efêmero que o conceito numérico dos dias: um ou dois dígitos não preenchem o vazio do homem pós-moderno.

………………………..E os “vencedores” propõem: Falemos do caos binário, já que se tornou “feio” falar do Sol e da Lua.

……………………….O choque. O homem e o tempo, com seus instantes vendidos em módulos. Uma overdose de estímulos de duração efêmera. Eis a droga que carece ser discutida, esta que alimenta o corpo fluido e seus receptores cerebrais carentes de imagens.

 

Ou seja, se faz necessário estender o conceito de silêncio para a visão. E isso serve para os leitores e, infelizmente,  também para muitos escritores. O homem se esqueceu que o silêncio é o ponto de partida e de chegada. É o nosso “buraco negro” individual. E imerso neste caos se incluem também escritores e leitores. Tenho a sensação de uma “bolha” literária. Algo como grupos de whatsapp, de Facebook, onde se posta e se aguarda, com urgência, o reconhecimento de nossa obra. Uma busca constante de feedback positivo. Mas conviver com os homens é a forma mais popular de isolar-se de si mesmo. Somos indivíduos comuns ambicionando a glória do instante. Mas este tempo desperdiçado hoje, essa busca da glória diária, é o tempero da fome de amanhã. É uma “verdade” requentada dia após dia. Perdemos muitas vezes o senso crítico, maximizamos nossos desejos e potencializamos nossas frustações. Entretanto, o Mundo é regido de tal forma que ficou fácil estender as coisas no sem tamanho da ambição humana. O mutilado se satisfaz com uma miragem da perfeição. Vejo uma linha do tempo que já teme o rastilho do fogo, um presente como uma presença perdida no instante, um sufocamento da poesia. Mas a palavra tem seu tempo e as horas sorriem durante o sono dos homens. Acredito que o nada resplandece no silêncio e que há de se buscar a paz em algum ponto impreciso entre a contemplação e a convicção da conquista. À paz da inércia sou mais o atropelo do silêncio. E o que pode fazer um ornitorrinco nestas circunstâncias? Trabalhar, silencioso, o naufrágio do homem.

 

DA – Seria apocalíptico demais dizer que, em escala global, estamos experimentando um processo de desumanização?

JORGE ELIAS NETO – Não tenho pretensão de conseguir com palavras dizer de minha visão apocalíptica para o futuro da humanidade. Por mais que eu insista, os dias são mais irônicos que as palavras. Mas agradeço que assim seja e que eu perceba a limitação de que elas, as palavras, reproduzam a realidade humana. Trabalho com tecnologia, realizo procedimentos em minha profissão que utilizam recursos altamente sedutores, com imagens impressionantes e, principalmente, com alto grau de resolutividade e de segurança. Ora, então eu deveria ser um porta-voz incondicional dos avanços científicos. Outro ponto, não tenho religião. Então eu deveria ser um herdeiro natural da visão positivista e materialista. Devia acreditar, em termos sociais, na morte de Deus. Mas a necessidade me fez ambidestro. Hoje mantenho o hábito de usar ambas as mãos para escrevinhar minhas dúvidas. E, como disse acima, elas me levaram a buscar entender esta transição fundamental do século XIX para o século XX. E antes de falar minha impressão sobre o mundo atual, gostaria apenas de dizer o nome de um poeta que me ajudou a ver toda angústia contida na dicotomia inserida naquele momento histórico: Augusto dos Anjos. Não. O punhal tem duas faces: a que brota e a que geme. Não vou recorrer às minhas anotações, às minhas leituras, vou recorrer ao meu descontentamento. Como ambientalista e como defensor dos preceitos da responsabilidade propagados por Hannah Arendt e Vaclav Havel, só consigo ver com muita tristeza o futuro, não só do homem, mas, principalmente, para o Planeta. Onde começa o fio? No novelo ou na farsa dos dias? A farsa cuidadosamente lapidada pelos ditos “engenheiros do caos” já se desgarrou do novelo da história e estes veem crescer, exponencialmente, o seu poder, e já ocupam o lugar vago deixado por Deus e pelo Estado. Muitos já escreveram sobre a terceira revolução industrial. Outros, neste momento de pandemia, sinalizam para a quarta revolução. Informação, imagem, consumo, efêmero, que palavras dúbias. É por isto que penso que um retorno ao triplo transcendental (o bem, o belo e a verdade), uma retomada da religiosidade, seria uma possibilidade, uma alternativa mais realista, mais acessível aos homens, em geral, de evitar um futuro distópico para a humanidade. Da mesma forma não creio que o pós-humanismo ou mesmo o neo-animismo sejam uma visão aglutinadora. Não acredito que o “big-data” seja uma panaceia para a humanidade. Fosse o pó o essencial da escultura, a matéria valeria mais que a arte e o vazio seria a verdade celebrada por todos. Mas essa visão míope aliciou uma parte significativa da humanidade. É preciso entender que dentro do absurdo existe um reino de perdas.

 

DA – No que se refere a pensar o escritor como leitor de seus próprios poemas, haveria uma espécie de margem para, numa mirada autocrítica, mudar aquilo que já foi publicado? A atitude revisionista não causaria certa instabilidade à obra do autor?

JORGE ELIAS NETO – Sabe, Fabrício, a palavra tem seu tempo, tem seu espaço na vida das pessoas. E no poema, quando ela se instala de forma definitiva em um livro, seja com perfeição ou meio impositiva, empurrando para os lados as demais, o poeta deve respeitar esta disposição como definitiva. Publicado o livro, passo a ser leitor. E mesmo, como acontece muitas vezes, ao me deparar com uma palavra ou mesmo versos que me pareçam imperfeitos e desagradem, raramente os altero. Pois já é outro o poeta, já é “outra” a palavra. Se a ordem, os versos, não se alteram, prevalece o impulso criativo do momento da criação do poema; ou o de sua lapidação. Em suma, eu me sentiria desonesto alterando um poema. Posso roubar um verso antigo, ou usá-lo como epígrafe, isto faço sem pudor, mas respeito as palavras. Alterar o poema seria, no meu entendimento, uma tentativa artificial de torná-lo atemporal. Talvez tudo seja uma busca de estetização da vida  ̶   retorno aqui ao que disse acima sobre a urgência de resultado  ̶ , um superdimensionamento de nossa obra, o que traduziria o quão brilhante e singulares somos enquanto indivíduos. Mas o meu sentimento é que o poder da flor está no voo da pétala. É neste desgarrar da beleza que se atinge a amplidão do infinito, é um distanciamento que tento alcançar. É esse voo, que independe de nós, que dará alguma relevância a nossa obra. As pedras marroadas sempre guardam um espaço para os nossos pés. Segue abaixo um poema que trata da relação obra e autor. Coloca, em verso, como tento entender esta questão.

 

A obra

Do artista
……………– a obra,
o todo
…………..– da obra.

Mesmo que um segundo
apenas, seja o tempo
para a derrocada do homem,
cabe o feito
…………..definitivo,
traduzindo o gesto, o
desfecho do combate.

Não se apegue
ao herói erguido aos céus
na glória do instante,
reafirmo:
………….– veja a obra.

A arte,
as mãos,
também se expressam
fechadas, sufocando
o ar no exíguo espaço
da tensão dos dedos.

O artista do palco,
do ringue,
persiste na imagem
que desaba
e se rasga.

Atenha-se ao diálogo
……….– com a obra.

 

Jorge Elias Neto / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Há limites para o autobiográfico no horizonte da poesia?

JORGE ELIAS NETO – É na prosa que o autobiográfico habitualmente se apresenta. O poema é território do “eu lírico”, um rebelde, fingidor, um subversor da sintaxe (como sempre diz o linguista e amigo José Augusto Carvalho). Mas toda grafia tem um recorte da alma de quem escreve e não me cabe julgar os poetas que se mantenham na primeira pessoa em seus poemas. Afinal, cada ilhéu traz uma concha guardada a sussurrar saudades. De início, para discutir essa questão como leitor de poesia, deixo de lado aqueles poetas que se confundem com a sua obra. Autor e obra não coexistem em equilíbrio de perfeição, quando o autor não se apercebe disso, geralmente a obra perde. Brinco com meus amigos que a biografia mais fiel deveria ser escrita pelo psicanalista… Agora, quando o poeta consegue dizer do “eu universal”, equilibrando entre os versos todos os recursos de linguagens que tem a sua disposição, é possível resgatar no seu passado memórias que permitam um diálogo com o leitor. Os grandes poetas podem tudo em seu “eu lírico” – esse “ser de papel”. O que podemos dizer no “Eu” de Augusto dos Anjos, e na obra imensa de Fernando Pessoa e seus heterônimos. Drummond e Minas Gerais, Adélia Prado e a religiosidade, Ferreira Gullar e o seu retorno ao mercadinho no Maranhão… Como nos diz o Antônio Miranda citando Lejeune:

 

Pode haver uma coexistência da biografia do autor na medida em que o poeta faz do “eu” da poesia lírica o “eu” da autobiografia. Por outro lado, ainda diz Lejeune, a poesia torna-se uma escritura segunda, isto é, aquela na qual o escritor reconverteu, ao voltá-la para si mesmo, a escritura que ele havia anteriormente elaborado para “dizer o mundo”. Não haveria, por isso, a possibilidade de a experiência poética ser contraditória com o projeto de uma “narrativa” autobiográfica.

 

Quando falo de minha produção poética, este diálogo com o passado está mais presente nos meus dois primeiros livros: “Verdes versos” e “Rascunhos do absurdo”. Em “Glacial”, o “eu” que se apresenta é uma caminhante que atravessa os Andes em uma busca pelo sentido da existência. Já em “Cabotagem” resgato a cidade de Vitória de minha infância e adolescência. Mas se eu tivesse de escolher um poema no qual vejo um equilíbrio entre a palavra, o passado e o Universal, é o poema “Cristo de pão”. Um evento ocorrido na mais tenra infância que ficou guardado e serviu como uma metáfora de minha, da nossa, relação com Deus.

 

Cristo de pão

Herdei de meu pai
esse Cristo forjado em miolo de pão.

Esse crucifixo que, pacientemente,
foi moldado no almoço de domingo;
em seus dedos, amassado,
em seus lábios umedecido.

Um Deus criado
pelo provedor de minha casa
durante o eterno silêncio
comigo repartido.

E eu aprendi que da bolinha de massa
se forja um ídolo.

Ao final da refeição, meu pai me estendeu
o Cristo na cruz.

Eu o peguei
e ele se partiu.

Foi duro para mim
ver Deus quebrar-se em minhas mãos.

 

DA – A Literatura é um perfeito território de ilusões?

JORGE ELIAS NETO – Guimarães Rosa escreveu que “… livro, a ser certo, devia de se confeiçoar da parte de Deus, depor paz para todos, virtude de enganar com um clareado a fantasia da gente, empuxar a coragens”. Sempre senti na arte a possibilidade de um legado sem tragédia; o mais próximo que posso chegar, talvez com menor risco, do legado humano e do porvir. Uma perspectiva de alguma sanidade. A grande literatura é uma das grandes fontes possíveis de ilusão. E com as suas coirmãs: música e artes plásticas são a maior possibilidade de nos levar próximos à perfeição da Natureza. Sabemos que, em graus variáveis, o disfarce da órbita é desviar-se do óbvio. E que “a arte existe pois a vida não basta”.  Afinal, em que pernas poderíamos apoiar esta existência no sem sentido? Como disse em um ensaio que escrevi sobre Augusto dos Anjos, “(…) hoje, faço parte dos poetas que procura este olhar insubornável, perdido na ausência. Procuro a nobreza desse olhar entardecido de uma ilusão”.

 

O que se arrepende é o avesso do nome

A morte é zelosa em sua força,
e aprecia a fragilidade no arremate do erro,
no estampido do verbo,
no testemunho do assombro,
no lento embuste dos passos catados.

Digital falsa
no contorno das letras
que se desprendem nas entrelinhas.

O flerte do verso com o abismo,
o encantamento da bruma sobre os lençóis,

……………………o suborno do medo.

 

DA – Afinal, por que escrever?

JORGE ELIAS NETO – Eu poderia usar da escrita como um lamento, parodiando o grande poeta, dizendo do drama existencialista pós-moderno, mostrando assim uma das facetas do por que escrever:

 

De que vale a vida se a tela é pequena, e de que vale o Mundo se não para viajar e registrar em um Smartphone a minha felicidade fluida e postar no Instagram, no Facebook e nos meus grupos de zap…

 

O exercício crítico da vida é uma das minhas justificativas para escrever. Poderia dizer que, por vezes, escrever é um ato de desespero, um vício que assombra. Na verdade, ao longo de minha vida, a escrita paira, e sua razão de existir se apresenta de várias formas. E confesso que tenho um ghost-writer, o hemisfério cerebral direito com suas pinguelas sobre a maré alta vazante… Escrever é um refugiar-se na síntese contornando a sintaxe, é uma terapia, é um jogo de videogame com possibilidades infinitas. A eternidade é uma metáfora que já não me ilude. Mas como me disse certa vez um psicanalista e amigo “há de se relativizar a morte, de tangenciá-la”. E embora saiba que a esperança é uma simples questão de instinto de sobrevivência, todo artista persiste vasculhando sua particular caixa de pandora. Em 2013, ingressei na Academia Espírito-santense de Letras. Naquela oportunidade, em meu discurso de posse, tentei trazer o porquê da escrita e a questão da imortalidade para o centro de minha fala. Tomo a liberdade de reproduzir aqui alguns trechos.

 

……….Digam-me, com a experiência humana no século XX, quanto nos afastamos deste deslumbramento com a capacidade humana de criar, descobrir – desse potencial do homem para atingir os céus com seu gênio, tornando-se o centro do Universo. Um deus a servir-se do inesgotável entornado em seus pés?

……….É certo que muito ocorreu ‒ perdemos a inocência ‒ , mas nada foi capaz de alterar a condição primeira da existência consciente: o desejo de transcendência da alma.

………E como reagir quando Albert Camus nos lança na face que “A razão não explica tudo, mas não existe nada além da razão”. Isto atordoa. E resplandece perante os nossos olhos – a Morte. O que faz a consciência com sua extrema maleabilidade, sua capacidade de se moldar perante o abismo? O que faz, como se justifica o indivíduo, em especial aquele mais cético e realista, aquele que se intitula um homem do absurdo, com sua existência lançada no rosto?

……. E o poeta responde a Albert Camus:

Parte-se do esquecimento.
Caminha-se para o esquecimento.
Disso dou testemunho.

Tamanha consciência da morte vindoura
nomeia encantamentos
em cada trecho de aurora.

E, se, em algum momento,
falta ao punho o sustento,
recolho-me ao verso que apoia.

Eis a dura lida que ao poeta condena.
Mas apesar do tormento da finitude certa,
tem no poema – pulsão de vida – rumo ao esquecimento.

 

É possível, trabalhar e sonhar. É possível a convivência do cientista com o poeta. Afinal, a quanto dista o zelo do cientista do abuso apaixonado do poeta com a palavra? Pois a poesia começa assim:

 

Emprenhar-se de miudezas;
deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros.

E quando a luz se aperceber, desmembrada
pelo estalo da palavra,
jogar-se nos trilhos
para salvar a flor.

 

Fabrício Brandão é frequentador do mundo da Lua, sonhador e aprendiz de gente. Se disfarça no planeta como editor da Diversos Afins, poeta, baterista amador, mestre e, atualmente, doutorando em Letras, pesquisando eus que trafegam pelo mundo virtual.

 

 

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